Considero que, para um psicanalista, a aquisição deste ritmo entre passado e presente, este percurso do outrora-agora, são essenciais para o tempo da psicanálise, e fundamentais para o desempenho da sua função. Faço um breve resumo do que isto me faz pensar.
A vida de qualquer pessoa é vivida como a continuidade de uma experiência, que é a experiência de estar vivo. E com o andar do tempo, esta continuidade da experiência vai-se enriquecendo com a experiência da continuidade.
As várias experiências, e a sequência dos sentimentos a elas associados, vão sendo organizados no tempo e esta experiência da continuidade vai permitindo a introdução da cronologia, ou seja, a vivência do antes e depois. A variedade das experiências insere-se no sentimento de continuidade do indivíduo que as experiencia.
A criança, o adolescente, o jovem, o adulto, o idoso são a mesma pessoa. Mas viveram as coisas de maneira diferente, nos diferentes momentos. E quando as recorda, já não são a experiência original, mas a experiência de uma recordação do passado. E isto é essencial.
É a vivência da continuidade da pessoa, na variabilidade das experiências vividas, que permite a construção de uma identidade coerente, no decorrer do tempo. E as experiências outrora vividas, são recordadas e integradas de maneira diferente, para poderem fazer sentido nessa experiência da continuidade. Quer dizer que uma experiência vivida é muito diferente da vivência da sua recordação, mas é com esta última que o psicanalista trabalha.
“Eu era feliz? Não sei, fui-o outrora agora” – Fernando Pessoa
O trabalho psicanalítico deve conduzir à boa integração, na vivência atual, das várias experiência passadas, com toda a complexidade deste processo.
O tempo do trabalho analítico, justamente, é a vivência de um percurso, em que o passado está sempre presente na vivência atual.
É por isso que a experiência da análise, com toda a sua autenticidade, não deve ser “contaminada” com encontros na realidade externa, entre os dois intervenientes no processo. Perderia a sua especificidade.
É por isso que eu gosto de ligar a escuta analítica à experiência da escuta musical. Porque a música é uma arte que se desenrola no tempo, e só existe num percurso. Na música, a recordação do que já passou e a sua repetição, o da capo, são fundamentais para a fruição emocionada no presente.
Em certa ocasião, comparei a escuta das várias sessões analíticas, ou seja, o decorrer de uma análise, à escuta do Bollero de Ravel. Neste caso, a repetição de mesma melodia é sentida como sempre diferente, o que lhe dá uma vivência própria em cada momento.
No decorrer de uma análise, separado da realidade exterior, vai-se vivendo o dia a dia, nos pensamentos, nas emoções, nas recordações, a noite e o dia.
“Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões”. É esta a frase que abre as Memórias de Raul Brandão. Estados emocionais do passado, como são vividos no presente.
“Se tivesse de recomeçar a vida” poderia ser o princípio de uma análise. É alguém que está a encontrar-se com a sua história para a contar, à procura de um sentido, de uma nova compreensão.
Na análise há um outro que ouve, e, de quando em quando, diz de sua justiça, promovendo a partilha de uma compreensão. E Raul Brandão continua:
Não me arrependo, nunca me arrependi. (…) Não me habituo. Não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. É uma primeira sessão de análise?
Para responder a esta pergunta, é importante ter presente que certas coisas só se dizem, e só se escrevem, muitos anos depois, quando os factos a que se referem são revividos, presentes na emoção como passado. E nessas condições estão envolvidos no tempo e na memória emocionada. É o caso desta frase de Raul Brandão.
Recordar essas coisas dá-lhes uma nova forma de existir que enriquece a vida, e pode dar uma integração atual aos sentimentos então vividos. Está-se perante o passado, que está sempre dinamicamente presente. É isso, pelo menos em parte, que procuramos fazer numa análise.
E sabemos que as condições do quadro analítico permitem que aconteça um processo com características muito especiais.
Com muita frequência, surge, em idade madura, o impulso de escrever as Memórias, o que leva o próprio a compreender muita coisa que tinha ficado em suspenso. E estas Memórias são uma fonte riquíssima de conhecimento humano.
Dentro deste movimento, é significativo notar que, quando alguém sente o impulso de escrever um romance, quase sempre isso o lança numa procura que se prolonga por muitos anos, sempre escrevendo mais, com frequência até ao fim da vida. Há como que uma exigência permanente de recomeçar a narrativa, na procura de a completar. Completar a vida? Outrora agora.
Imagem: Sigmund Freud e sua neta Eva Freud
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