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O Silêncio na Análise - e os livros que ajudam a pensar



Na experiência da pandemia, quando todo o mundo (se) fechou, a necessidade de ligação e de manter uma rede funcional e activa alimentou o engenho de partes muito saudáveis da mente que procuraram e encontraram formas de reinventar a comunicação. Graças a isso somos agora mais próximos de quem está longe.


A SBPCamp (Sociedade Brasileira de Psicanálise de Campinas) tem um projecto denominado “Literatura e Psicanálise”. A colega Cláudia Antonelli, com quem vou mantendo um contacto transatlântico possível pelas redes sociais, vai acompanhando as minhas leituras e teve a gentileza de me convidar para o encontro de Março com o livro "Antes de Nascer o Mundo” de Mia Couto e o tema “Afinando silêncios para nascer o Mundo: A função psicanalítica da personalidade do analista", onde as colegas Marina Ribeiro e Vera Lamanno Adamo explanaram mais longamente sobre o tema da tertúlia.


Num livro há sempre a leitura da história tal como ela é; uma leitura metafórica que a narrativa evoca; e a aprendizagem que dele podemos tirar que tem muito mais a ver com cada leitor do que com a intenção do próprio escritor.


Este livro é uma viagem a um universo muito único. Um homem foge da dor da perda e de um luto impossível e aliena-se num antigo refúgio militar no interior de Moçambique anunciando aos filhos que o mundo não existe mais. Serão eles os únicos vivos sobre a terra. E deposita no filho mais novo o lugar do não dito, dos silêncios e do esquecimento, pedindo-lhe companhia “venha ajudar-me a ficar calado”, chamando-o de “afinador de silêncios”.


A primeira informação que nos é dada “A primeira vez que vi uma mulher tinha onze anos e me surpreendi subitamente tão desarmado que desabei em lágrimas” fica como que em suspenso.

Surge como por vezes acontece num processo analítico – um dado, aparentemente desconexo, mas que nos informa sobre a qualidade afectiva do paciente.

Sentia-a como um diapasão, aquele instrumento mágico que ao ressoar nos permite afinar os instrumentos.

Aqui serve para nos dizer que o menino de quem vamos ouvir falar não está amargurado, empedernido, que traz consigo ainda a inocência da infância, a capacidade de se ligar à experiência do belo, e que, o que quer que vamos ler de seguida e que é enunciado logo na frase a seguir “Eu vivia num ermo habitado apenas por cinco homens”, não lhe roubou a possibilidade de sentir, de se deslumbrar, que está disponível para o novo e para o crescimento.


Somos depois convidados a mergulhar naquele mundo isolado e povoado de silêncios.

Para uns o silêncio é ausência – lugar dorido, prenhe de revolta.

Para Mwanito é lugar de paz, de serenidade.

Neste mundo de homens o feminino é trazido pela selva, pelo rio/água e pelo silêncio. O silêncio é mulher/mãe. É lugar do rememorar, de evocar o tempo da presença e do sonho.


Para um dos irmãos traz a frustração, a zanga – o buraco deixado pela ausência do objecto, raiado de ódio, de desventura.

Para o outro é lugar de sarar feridas. De recontar o passado. De reconstruir o materno a partir do “quase nada”.


À semelhança do que André Green nos explica no seu trabalho “Mãe morta”, o preço de ter uma mãe e perdê-la pode ser muito mais desorganizador do que nunca a ter tido, e encontrar a função materna em objectos de substituição.


À medida que a história nos vai sendo narrada vamos percebendo que este mundo de silêncios encerra em si o fantasma do abandono, da esquizoidia, do delírio, do “não pensamento”, da culpa. É-nos mostrado que o que inicialmente se constituía como refúgio/fuga do mundo se vai tornando numa prisão alienante, com um corte cada vez mais assombroso com o mundo real.


A esperança reside no mundo infantil, o único lugar onde é possível resgatar a humanidade de cada um, apelando à possibilidade de através dessa regressão, ressignificar as experiências e reconstruir as narrativas.

Mwanito é o único que se mantém fiel à sua origem (que na história não foi obrigado a mudar de nome numa cerimónia de “rebaptismo” que reintegrou a retirada do mundo real) – talvez possamos dizer que simboliza uma parte do self, infantil, primária, onde ainda é possível voltar para redescobrir caminhos novos.


Experimentamos tantas vezes na análise estes vários tipos de silêncio. Há silêncios da ordem do insuportável. Em que o que é pedido ao analista é que suporte o ódio pelo objecto primário, ali dirigido ao analista, na sua forma mais arcaica, sem formulação possível, sem tradução.

Numa linguagem Bioniana o analista é convertido numa tela onde são projectados elementos beta não significados. São silêncios de ataque ao pensamento, que paralisam. E transformam o analista, no movimento transferência/contratransferência, na mãe inútil, inábil, e abandónica. – Estes são silêncios muito difíceis de “afinar”. Em que todos os caminhos são apagados, à semelhança do que é contado na história como “varrer atalhos” “O que fazíamos na realidade? Matávamos, nos nascentes atalhos, a intenção de crescerem e se tornarem estrada. E assim anulávamos o embrião de um qualquer destino”, - silêncios onde parece não ser possível um contacto mais são com o mundo.


Outros pacientes conseguem viver na análise a experiência do silêncio onde se podem “pastorear demónios” (como diz Mia Couto) – onde na presença do analista se torna menos ameaçador entrar em contacto com o mundo interno, e se permitem a essa deambulação.


No discurso encantatório de Mia Couto, tão característico de todas as suas obras, temos a própria função analítica – há todo um canto harmónico rico em sonoridades e modelações, o discurso é construído em função de cada personagem, há a criação de novas palavras que são válidas apenas ali, naquele contexto e na relação íntima que vamos criando com as vivências internas de cada uma delas. Há o ressignificar das vivências, um tecer de narrativas, num acesso ao mundo onírico e ao mundo real, saltitando de um para o outro ao sabor da associação livre.


É talvez esta uma das grandes magias da literatura. Traduzir numa linguagem outra, o que até então carecia de palavras para ser expresso, e assim permitir a projecção e identificação do leitor à obra, e abrir o campo para novos pensamentos.


Ser psicanalista e ser leitor são para mim papeis indissociáveis. Os livros enriquecem-nos e alimentam-nos. Oferecem-nos lugares de pensamento, expandem as possibilidades de ressignificação das experiências, permitem-nos, se tivermos sorte, elaborar o que fica refém de alguns silêncios na análise.


Estamos perto do dia mundial do livro – 23 de Abril – data em que faleceu Cervantes (1616), nasceu Nabokov (1899), nasceu e morreu Shakespeare (1564 – 1616). Estes e tantos outros continuam a fazer-nos sentir e a ajudar-nos a pensar.


Que nos alimentemos de livros!


Imagem: pixabay.com (banco gratuito de imagens)







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