Em Portugal, o Assistente Social é tradicionalmente encarado como um técnico que facilita o acesso a subsídios e apoios. Mas noutros países, como os EUA, há muito tempo que os Assistentes Sociais são figuras terapêuticas relevantes, podendo assumir a função de psicoterapeutas. Nos últimos anos tem-se assistido ao desenvolvimento de novos paradigmas teórico-clínicos, surgindo o Serviço Social Clínico, talvez ainda pouco conhecido em Portugal.
Fomos falar com o Dr. Fábio Mateus, Psicólogo, com o objetivo de nos esclarecer sobre
esta vertente psicoterapêutica do serviço social.
Fábio Mateus é membro fundador e presidente da Associação de Psicologia e Desenvolvimento Comunitário. Premiado com o prémio Fidelidade em 2018, com o objectivo de criação de uma bolsa social para a construção de um Centro de Saúde
Mental no Concelho de Alcochete. Em 2019 desenvolveu o projecto de Literacia em
Saúde Mental co-financiado pela Direcção-Geral da Saúde. Interessa-se pelas aplicações da teoria psicanalítica a campos de intervenção fora do setting psicanalítico clássico. Membro da American Association for Psychoanalysis in Clinical Social Work e da International Society of Psychoanalysis and Philosophy.
Olá Fábio, podes falar-nos um pouco da história do Serviço Social Clínico?
Olha, eu penso que, antes de mais, é necessário estabelecer uma distinção entre:
a) psicanálise (propriamente dita) aplicada a populações que apresentam fragilidades
socioeconómicas; b) serviço social clínico; e c) serviço social psicodinâmico.
Esta ideia de a) psicanálise aplicada ao âmbito social tem raízes muito antigas, sendo
comum centrar as suas origens a partir do V Congresso Psicanalítico Internacional em
Budapeste em 1918. Sendo célebre a consideração final de Freud onde se apelava à
necessidade de universalização do acesso à psicanálise. Na plateia contava-se com a
presença de Karl Abraham, Siegfried Bernfeld, Melanie Klein, e é claro, de Max Eitingon. Na década de 1920 o apelo de Freud concretizou-se - como veio a afirmar Max Eitington (1923) ‘...die halb Prophezeiung und halb Forderung’ (p. 1) - e tornou-se possível a análise de populações desfavorecidas e da classe operária na policlínica de Berlim. Nas clínicas gratuitas de Freud que foram surgindo pela Europa, como documentaram detalhadamente Elizabeth Danto (2005) e Elizabeth Roudinesco (1988). Embora, no essencial, o desafio Freud tenha sido interpretado como uma tentativa de chamar à atenção para a necessidade de redução dos custos associados a uma psicanálise, tornando-a gratuita e/ou de baixo custo. É necessário notar, no entanto que Freud propunha que, por via de várias modificações da técnica psicanalítica dever-se-ia trabalhar para que as populações excluídas pela pobreza, classe social e privações associadas pudessem aceder aos benefícios da cura analítica.
Um desejo de avançar o conhecimento e a justiça social que depositou no trabalho de
Max Eitingon (1923, 1924) e de Anton von Freund (Freud, 1920). E de lembrar ainda
que uma das sugestões que deixou a propósito das modificações necessárias refere-se
ao recurso a técnicas pré-psicanalíticas que haviam sido excluídas do arsenal de técnicas psicanalíticas, como a ab-reação e a sugestão. Uma outra proposta explícita de Freud, raramente citada, refere-se à necessidade de "muitas vezes (...) conseguir algo combinando a assistência mental com algum apoio material" (Freud, 1918).
Neste sentido hoje conseguimos encontrar com facilidade autores contemporâneos
que se interessam por esta prática, dos quais destaco o trabalho de Patricia Gherovici
em Bairros Mexicanos em Filadélfia.
Já o c) Serviço Social Psicodinâmico apresenta características distintas. Aqui não se
trata de levar a cabo uma psicanálise propriamente dita, mas sim recorrer à matriz de
leitura psicanalítica com o objectivo claro de informar a prática do assistente social.
Podemos aqui igualmente centrar os rudimentos históricos desta tendência igualmente na célebre conferência de Freud. Destaco, no entanto, o trabalho de Karen Horney e de Claire Winnicott, que, do ponto de vista histórico são um marco incontrolável. Mas, para as pessoas interessadas deixo aqui também algumas referências contemporâneas: Andrew Cooper, Sylvia O'Neil e Patrick Casement.
Historicamente esta ideia de Serviço Social Psicodinâmico surge com o claro objectivo
de fornecer aos assistentes sociais uma formação consistente com a teoria psicanalítica, já que, como Garret (1949) afirmava: "Casework originated in order to supply concrete services but, long before the present recognition of the operation of the unconscious and the importance of emotional problems, caseworkers were frustrated by the fact that merely supplying material needs, advice, or services of various kinds did not result in the desired improvement in their clients".
Já o b) Serviço Social Clínico, apresenta um enquadramento histórico relativamente distinto. É necessário antes de mais entender que o próprio nascimento, formal, do
Serviço Social, com a publicação das obras de Mary Richmond, é considerado ainda como a abordagem mais tradicionalista do SS, sendo conceptualizado como abordagem "diagnóstica"; e/ou "clinica".
Esta tradição criou raízes profundas nos Estados Unidos, sobretudo na sequência de
todo o movimento anti-psiquiatrico. Sendo que hoje a grande maioria dos técnicos de
saúde mental nos Estados Unidos são de facto assistentes sociais clínicos, e não psicólogos, psiquiatras ou enfermeiros.
E neste sentido, a psicanálise surge no SS como uma das escolas teóricas que
informam a prática. Aqui, não existe uma distinção clara entre a Psicologia Clínica e o
Serviço Social Clínico. A abordagem é, no essencial, a mesma. Não obstante, o foco
epistémico das teorias é essencialmente de base social. O tipo de população alvo e a
missão da especialidade foca-se sobretudo nas questões ligadas às desigualdades
sociais e económicas. Portanto, em certo sentido, pode ser vista como uma aplicação
directa das propostas de Freud de 1918.
Quais os modelos teórico-clínicos implicados no Serviço Social Clínico?
Uma vez que o Serviço Social Clínico é, no essencial, um processo psicoterapêutico
clássico, os modelos teóricos que o sustentam são exatamente os mesmos que
informam a prática clínica em psicologia. Estamos a falar de profissionais que se
especializaram primeiro em Serviço Social Clínico e que com frequência se tornam
psicoterapeutas e/ou psicanalistas exercendo as suas funções com base nos mesmos
pressupostos teóricos. Assim, encontramos assistentes sociais clínicos de formação
kleinana, lacaniana, freudiana... Não obstante, o Serviço Social Clínico é mais comum
nos Estados Unidos, e neste sentido, a grande maioria dos técnicos inscreve-se dentro
da Psicologia do Self e Psicologia do Ego, tendo Kohut e Hartmann como principais
inspirações teóricas.
Como se traduz na prática o Serviço Social Clínico? Constituiu-se como uma
psicoterapia? Queres falar-nos um pouco de algumas das tuas experiências?
A figura do assistente social clínico de formação psicodinâmica não existe em Portugal
de forma oficial. E, portanto, eu próprio teria muitas resistências em considerar o meu
trabalho enquanto "Serviço Social Clínico". De facto, no meu trabalho na APDC, sou com frequência confrontado com situações sociais graves, que exigem uma articulação
próxima com profissionais da área social. E é precisamente neste sentido que eu julgo
que o tema do serviço social psicodinâmico se deve colocar: o terapeuta preserva a
sua identidade profissional junto do paciente, enquanto outros técnicos recorrem a
uma grelha de leitura psicanalítica que informa a prática do assistente social. De modo
a que se possa verificar um continuum epistémico que atravessa todo o conjunto de
técnicos que se ocupam de um caso, de modo a que possamos construir uma lógica
transdisciplinar no âmbito da intervenção social.
Na prática, nem sempre é fácil transmitir esta ideia aos técnicos do campo social. E
parte da minha batalha prende-se com a ideia de que os assistentes sociais deveriam
ter acesso a mais formações de orientação psicanalítica aplicadas ao campo social. E
embora exista muita literatura a ser descoberta sobre este tema, em Portugal não
conhecemos esta tradição transdisciplinar.
Posso no entanto adiantar alguns exemplos sobre como é possível aplicar estas ideias:
i) a um nível macrosistémico aconselho os textos de autores como Vamik Volkan e de
Andrew Cooper que se centram em dinâmicas de massas e que propõem
operacionalizações específicas das teses psicanalíticas aplicadas à psicologia de
massas; ii) a nível mesossistemico existem igualmente imensos trabalhos em torno da
socioanálise. Que, como sabemos, está associada ao nome de Wilfred Bion e à
Tavistock. E que permitiu a emergência de trabalhos clássicos como o artigo da Isabel
Menzies. Aqui o trabalho pode ser desenvolvido com grandes grupos comunitários
como um todo: e.g. CPCJ's, CAFAPS's e/ou escolas, câmaras municipais...
iii) a nível microssistémico, o trabalho é desenvolvido na relação entre o assistente
social e o utente recorrendo a um referencial psicanalítico. Para entender o que isto
significa reitero a minha recomendação sobre os trabalhos de Sylvia O'Neil, Claire
Winnicott e é claro de Patrick Casement, para que se entenda o que significa
efectivamente trabalhar de forma psicanalítica junto de populações em condições
sociais e económicas graves.
_______
Fábio Mateus abre-nos um pouco deste universo do Serviço Social Clínico. A teoria psicanalítica é uma teoria sobre a condição humana e pode ser muito útil na abordagem de situações de grande precariedade social e económica. As intervenções sociais podem e devem ser pensadas tendo em conta a intersubjetividade de todos os intervenientes. A clínica psicanalítica não se confina aos consultórios, sendo de grande pertinência nos mais diversos contextos sócio-culturais.
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