Trago na memória o momento em que, pela primeira vez, senti que tudo tinha parado: já não eram só as ruas desertas, as pessoas que não passavam… Algo estranho se sentia no ar. Também o rio e o céu tinham emudecido, não havia barcos no rio, nem ondulação nas suas águas, nem luzinhas dos aviões no céu… Um cenário sem atores onde um latido ocasional interrompendo o silêncio fazia imaginar que a cidade se tornara campo…
Passadas semanas das “medidas de contenção”, pergunto-me que rasto emocional e onírico deixarão estes tempos em nós? A memória do medo da morte, ou a de uma barreira invisível que nos separa dos outros – “Importa-se de se afastar um bocadinho?”, dissera há uns dias a senhora dos correios, apesar da superfície de vidro que nos separava… A dor das saudades e do isolamento ou a perda de liberdade? As cidades fantasma ou os lutos por fazer?
Permanece a sensação de que o real se alterou: não só na vida interrompida, mas também neste excesso de real(literal) que todos os dias entra pela nossa casa (e mente) adentro – nas notícias diárias, nos números e estatísticas, no excesso de comunicação digital descorporalizada.
Com o irromper desta nova e brutal realidade nas nossas vidas alterou-se o foco de atenção, subitamente em estado de alerta: se no início me continuava a sentir capaz de trabalhar, de tratar das crianças, de ler notícias e partilhar muito… sentia-me contudo incapaz de mergulhar dentro de mim, de ouvir música, de fantasiar, de ler ficção, de arrumar em casa aquilo que não era essencial, de organizar as fotografias à espera desde o verão passado… O real literal entrara pela vida adentro…
Para Luís Martín Cabré, psicanalista, esta crise, na sua ligação com a possibilidade de morte, dota-a de características semelhantes às situações traumáticas* – “uma violação psíquica, uma situação que irrompe violentamente, de forma inesperada, que não se representa mas se presentifica bruscamente, provocando uma reação de surpresa, de choque, uma reação paranoide ou o desmentido (vai passar, só uma gripe)” – conduzindo a uma alteração da temporalidade: “enquanto na claustrofobia e agorafobia existe uma deformação na relação com o espaço, aqui alterou-se a relação com o tempo, o tempo ficou paralisado, quieto, vazio, faltam as palavras…”
Mas não só o medo, também o confinamento criou uma paragem no tempo, uma suspensão da vida. Enquanto o real literal tomou conta do nosso tempo, o mundo real externo (os acontecimentos, as viagens, as trocas relacionais com os outros) ficou como que imobilizado.
Fechados nas nossas casas, com a família nuclear, o mundo externo, os outros, o mundo exogâmico, por assim dizer, tornou-se vedado. E quem mais sofre com isso são sem dúvida os adolescentes. Uma adolescente queixava-se do festival de ginástica cancelado, e da necessidade de estar com as amigas, com quem já não lhe apetecia falar sequer por vídeo-chamada. Também não havia nada para dizer…
O ressurgir de angústias claustrofóbicas em alguns pacientes mostra como também a vivência do espaço se alterou… Ao vedar-se o espaço externo confundem-se também os espaços psíquicos. As crianças, se por um lado são empurradas para a pseudo-autonomia da tecnologia (trabalho escolar e conversas digitais com os amigos), por outro, perdem autonomia ao deixarem de ter o mundo privado da escola: os mundos familiar e escolar misturam-se, confundem-se, os pais fazem de professores, e as crianças deixam de sentir que o dia (na escola, com os amigos) foi unicamente seu, secreto. Os educadores e professores deixam de estar lá também como objetos de substituição das relações primárias e modelos identificatórios alternativos… E os pais vêem-se muitas vezes forçados a “abandonar” os filhos em casa durante o tele-trabalho…
Contudo, com o passar do tempo, esta paragem do tempo e este confinamento do espaço vão abrindo uma janela para outras coisas, para estar com os filhos sem tempo, para acabar finalmente as tarefas que estavam à espera de tempo, para ir à prateleira ler aqueles livros que aguardavam tempo…
Sabemos agora, que acabando o “estado de emergência”, não vamos poder sair a correr para a rua abraçarmo-nos, como imaginámos, e como aconteceu no final das Guerras, dando ao corpo a expressão dos afetos. Será um entusiasmo mais asséptico, ou mais “mental”. Nem os adolescentes ao voltarem à escola vão poder enrolar-se amorosa ou agressivamente, libertando afetos e hormonas. Embora, como conta a história do escorpião que mordia a tartaruga porque estava na sua natureza, duvido que tal seja possível…
E mais do que a pandemia do vírus, será a do medo que mais tempo levará a curar-se…
O que poderemos esperar desta “nova a-normalidade” para além de máscaras e distanciamento físico?
Por todo o lado escuto o desejo, por vezes inconfessado, de um futuro diferente do passado. Talvez estejamos a construir uma outra arma contra o vírus, uma “imunidade psíquica” de grupo, que resulta do que Cabré chama de “progressão traumática”: “um processo artificial de maturação que surge do sofrimento emocional, trazendo uma aquisição de novas capacidades, de solidariedade, de disponibilidade para ajudar o outro, nas linhas telefónicas de ajuda… O abrir das janelas todas as noites para aplaudir e para cantar ‘Resistirei’… Algo de novo está a surgir, que vem de não ficar a olhar a tristeza, mas a esperança, onde as coisas nascem, onde as coisas crescem, onde se partilham. Na tristeza olha-se o que já não está, na esperança o que está a surgir…”
Imagem: Salvador Dali, “A Persistência da Memória” (1931)
* Webminar “Procesamiento de la situación traumática y el aislamiento social“, International Psychoanalytical Association, 3 de Abril 2020
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