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O olhar catastrófico do Homem

Face a um mundo que nos impõe um leque variado de fenómenos, seja numa escala global ou numa dimensão mais “caseira”, sentimo-nos desafiados a reflectir sobre a natureza da força e processos que estas situações exercem em nós, e no modo como interagimos com este mundo em constante transformação.

A comunicação social, nos seus diferentes e cada vez mais sofisticados canais, oferece diariamente uma torrente quase imparável de acontecimentos extremos, uns provocados pela ação directa do homem, outros decorrentes da ação da natureza. Num estilo e ritmo propositadamente velozes, repetidos exaustivamente no sublinhar da tonalidade trágica e catastrófica, amplia-se uma certa qualidade de resposta apocalíptica que vinca o sentimento de ameaça e alarme não só dos desastres reais e atuais, como também daqueles que imaginariamente poderão ainda surgir. As mudanças climáticas e consequentes catástrofes naturais inscrevem-se então num registo capaz de despertar fenómenos psíquicos algo semelhantes ao terror de uma destruição nuclear. Ambas as situações requerem a necessidade de mediação psíquica, posto que o simples pensar sobre estas possibilidades parece suscitar doses massivas de ansiedade.

Sob uma visão histórica do trauma colectivo não nos é difícil perceber como todas as gerações vivem pelo menos um momento de ameaça catastrófica, de risco eminente de destruição total. As duas grandes guerras mundiais, o holocausto, a guerra fria e a possibilidade latente de eclosão de um conflito nuclear, como que se revelaram capazes de imprimir uma clara marca traumática na psique colectiva da humanidade.

Ora, o crescente reconhecimento da realidade das mudanças climáticas actualiza no humano um semelhante dilema psíquico colectivo: Como poderemos pensar de uma forma realista sobre algo cujas implicações são impensáveis? As mudanças climáticas, tal como a hipótese de um conflito nuclear ameaçam o imaginário com o excesso!

A fantasia catastrófica do fim do mundo não potenciará uma percepção exagerada sobre a qualidade da força destes fenómenos sobre nós, a par da subestimação dos nossos recursos para lhes fazer face? Como se a um nível colectivo, agora sob um ponto de vista clínico, ocorresse algo idêntico ao sujeito que sob o “fogo” de fortes ansiedades depressivas espelha a crença inconsciente de que os seus recursos internos para enfrentar a realidade estão como que danificados ou em clara insuficiência. E por isso à mercê, numa posição de forte vulnerabilidade, numa espécie de reactualização das ansiedades mais arcaicas, dos terrores sem nome próprios da experiência infantil precoce de todo o ser humano. Deste modo, temos como fenómenos do mundo interno se vêem espelhados e deslocados num objeto externo sentido como ameaçador e potencialmente destrutivo.

A crise, a incerteza, o medo associado à mudança sempre farão parte inevitável do património vivencial do Homem. O lugar do pensamento reflexivo e integrativo emerge então como um espaço que não pode deixar de ser encorajado e desenvolvido, remetendo-nos para a ideia de Bion sobre a capacidade de suportar a incerteza, na vez da passagem precipitada ao acto incontinente. Se, como diz o filósofo George Steiner, habitamos o mundo pela via do pensamento, também é certo que necessitamos de tempo reflexivo, capaz de estabelecer ligações e novos padrões. Privar a mente desse tempo é condicioná-la ao acesso do bom funcionamento da posição depressiva e abrir então um maior espaço ao senso de perda de controle e ameaça de aniquilamento, onde o objecto externo representado pelas “catástrofes naturais” acaba por cumprir uma fiel função depositária.

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