O futebol é um universo que provoca em muitos de nós atitudes e emoções intensas. Convoca o irracional, quer seja de amor ou de ódio. Era o futebol e o Eusébio que juntava o meu avô, o meu pai e eu, criando entre nós momentos de grande afetividade.
Recordo com carinho os mundiais de futebol dos anos 70 e 80. A temível Alemanha, a endiabrada Holanda, o Brasil mágico, a máquina Italiana e o génio Maradona. Antes dos torneios se iniciarem tinha uma sensação de entusiasmo e expetativa, sabendo que durante um mês iria viver emoções fortes. Quem ganharia desta vez? Haveria algum golo de pontapé de bicicleta? Algum golo de cabeça através de um salto de peixe? Já sabia que, se um jogo se resolvia nos penaltis, havia momentos dramáticos. Explosões de alegria e desilusões profundas. Conhecia a maior parte dos jogadores, pois fazia a coleção de cromos procurando completá-la antes do mundial se iniciar. Apesar de Portugal não ter estado na maior parte destes mundiais, criava sempre uma simpatia por certas seleções e nenhum jogo me era indiferente. Ver a final do mundial era ver um acontecimento extraordinário, saber que no final desse jogo muitas pessoas sentir-se-iam as pessoas mais felizes do planeta.
Também na minha infância joguei futebol na rua com os meus amigos. Qualquer bola servia e as árvores faziam de postes da baliza. Esforçava-me sempre por ganhar e ficava levemente irritado se perdia. Era a brincar mas o jogo era muito levado a sério por todos. A rivalidade estava sempre presente, mas o futebol era um jogo que nos ajudava a fazer amigos e a criar grupos. A desenvolver certos aspetos da identidade masculina.
Para o psicanalista Zeferino Rocha (2012), o brincar da criança é apontado pelo desejo em transformar-se em pessoa crescida. Acrescenta que, “quando a criança brinca, ela inventa um espaço que é próprio e que habita com as criações de sua própria imaginação, que não são algo senão consumações de um desejo sustentado por seu narcisismo, o qual se confia que seja omnipotente.” Para outro psicanalista, Winnicott, “…o jogar é a atividade que propicia a condição para que ocorra a sublimação das forças pulsionais, tanto de dominação quanto de agressão, possibilitando sua ocorrência de modo aceitável socialmente…”
Os jogos de futebol eram assim palcos onde frequentemente experimentávamos a nossa agressividade e competitividade que, não só não destruíam as relações, como as fortaleciam. O futebol pode ser um catalisador para movimentos de identificação do filho ao pai. Por outro lado, e com alguma frequência, meninos mudam de clube de futebol para magoar os seus pais, com quem estão zangados.
Ao crescermos, como se constitui a forma como sentimos o futebol? Mais concretamente, como vivenciamos as vitórias e as derrotas do nosso clube? Quando o nosso clube vence um título importante, é provável sentirmo-nos invadidos por uma sensação de bem-estar interior, de alguma euforia e poder, de que “está tudo bem”. Como se nós e todos os adeptos do nosso clube fossemos uma única pessoa. Será um estado de uma omnipotência e grandiosidade infantil? Será uma reação anti-depressiva? No polo oposto, quando o nosso clube perde, sentimo-nos desolados, tristes e irritados. “Algo” não está bem, mas não sabemos bem que é. Sentimo-nos feridos no nosso narcisismo, inferiorizados. Afinal, o que representa o futebol para os seus adeptos? Talvez muitos projetem sobre os seus clubes algo associado a um ideal de si próprios, numa tentativa de apagar ansiedades de castração ou compensar frustrações narcísicas. Investidos como objetos entre a ilusão e a realidade, a forma como vivemos o futebol mostra a (in)capacidade para irmos aceitando as nossas incompletudes bem como a nossa compleição narcísica.
E apesar de presentemente já não viver o futebol como no passado, o Mundial de futebol representa para mim o menino que fui, os amigos, a rua e a caderneta de cromos. No fundo, o mundo ideal da minha infância.
Comments