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O meu nome é Corona

O flagelo não está à medida do homem, dizem então que o flagelo é irreal, é um pesadelo que vai passar. Mas ele demora em passar e, de pesadelo em pesadelo, são os homens que passam (…)”

Albert Camus (1947). A Peste

O meu nome é Corona e a minha chegada não é bem-vinda. Não estou aqui por vontade própria, não tenho vontade, quanto mais própria. Desconheço quem trespassou a minha morada, mas vou esclarecer alguns pontos contigo, humano. Fui convidado pela tua insensatez. Sei qual o teu maior desejo: fechar a porta que me permite entrar, sem ser convidado, e possuir-te literalmente por dentro. Sou simples e há quem diga que não sou um ser vivo, mas o que é um ser vivo? Tens respeitado a vida? Sou eu o único responsável pelo teu desespero?

A minha própria origem parece ser um mistério, todos sabem que trouxe a morte, e quando isso acontece, não tenho muito tempo de vida, estupidez da minha parte, pensarás. Neste ponto até diria que pareço humano, quando penso na forma como destróis o teu hospedeiro, o nosso planeta. Não sou eu, uma cadeia de aminoácidos à espera de penetrar no teu nariz, quem se proclama racional, obra de Deus ou o topo da evolução. Eu só sei infectar, fazer cópias e sofrer mutações bem-sucedidas.

O nosso primeiro encontro suscita discussões científicas, teorias da conspiração e secretismo ditatorial. Por agora, não sabes bem quem eu sou de forma precisa ou oportunamente imprecisa. Dizem que a cidade de Wuhan é o meu berço, num mercado cruel e sujo. Cada vez que destróis a natureza, crias uma cadeia de acontecimentos, alterando uma ordem que custou milhões de anos a ser construída. Não há consenso quanto a minha origem mas, é fácil ver a origem das tuas desgraças. O predador tornou-se a presa. Tenho familiares afastados que se anteciparam a minha chegada, tantas pestes já vivestes desde as tuas origens e parece que não apreendestes nada com elas. A tua memória é curta.

Tenho sido usado para esconder muita da tua incompetência. Sabes por experiência, que quando escolhes cooperar, podes vencer-me. Contudo, preferes cuidar ou descuidar o teu pequeno reino. Não sou nenhuma exceção aos teus grandes problemas. Dizem que o ser humano é o único animal que comete o mesmo erro mais de duas vezes. Já perdi a conta das vezes que errastes por usura, poder, cegueira fanática, vingança, estupidez ou omissão. Compulsão à repetição, chamou-lhe o Freud, a tua insistência na morte.

Outros, silenciosamente, aproveitam a ocasião para aumentar o seu poder, na noite obscura das ditaduras, alguns até se apressaram a aplaudi-las, algo que nem um vírus, inerentemente acéfalo, faria. Não aguentas a verdade, preferes a mentira. Eu, pelo menos, cuido das minhas cópias e melhoro os meus disfarces. Não sou bom nem mau, apenas sou outro ser a tentar sobreviver, sem ética nem consciência. Não fui civilizado.

Sei que desta vez estás assustado e impotente. O medo é tão infeccioso como um vírus fora de controlo. Sei de alienados que negam o meu poder, porque não acreditam no cenário dantesco em que transformo qualquer enfermaria. Sei que todos sonham com a minha derrota. Sei que me chamam praga, guerra e assassino invisível. Na verdade ainda não me conhecem verdadeiramente, guardo mistérios que a ciência se desvela por desvendar. Já reparaste como desvendei como os humanos vivem entre si? Não foi difícil, bastou-me navegar em suspensão e a verdade veio à tona, a mentira também. Na realidade, sou um mensageiro. Sou uma praga, mea culpa, mas não sou a única.

Quando invadi a tua vida, alguns afirmaram que eu não fazia distinções entre as pessoas, como se eu fosse um vírus democrático, uma espécie de justiça social com carga viral. A morte é incontornável, incorruptível e invencível, eu não. Eu prospero na pobreza, na falta de higiene e nos espaços exíguos, na ignorância, na omnipotência, na censura dos números, nas mentiras, na ausência de saúde, onde os que dizem a verdade desaparecem, nos mortos que não contaram, nem podem contar o pesadelo de Wuhan. Eu prospero onde os seres humanos não vivem dignamente. Sou oportunista e tu ofereces-me inúmeras oportunidades.

Agora avanças com as tuas vacinas, neste jogo de vida e de morte, ainda queres ganhar milhões? Quando tomei contacto com os teus anticorpos, senti-me debilitado, um pouco assustado, confesso; mas logo, logo, vi como corriam uns contra os outros. Todos querem chegar primeiro e ganha a melhor oferta. Entretanto continuo à solta, o teu egoísmo e a tua voracidade por moeda forte, alimentam a minha teimosia em variar-me.

O meu nome é Corona, sou chinês, sou britânico, sou brasileiro, sou sul-africano, sou californiano e viajo sem passaporte. A única forma de derrotar-me seria vacinar toda a humanidade em uníssono, para não regressar enfurecido. A poliomielite não tinha acionistas deste calibre. Chamaram-lhe a “Grande Corrida”, comigo pareces correr para o caos económico, social e o trauma emocional. A tua visão é curta e imediatista, por isso já não temo as tuas vacinas.

Estás debilitado, cansado e barricado. Sem querer, fiz xeque aos teus encontros, a tua liberdade, à presença reconfortante na doença, ao celebrar e ao chorar em companhia, tirei-te o pão e a casa, o trabalho; cobri o teu rosto com um véu anti-séptico e tresandas a álcool sem prazer. Posso compreender que não gostes de mim, que me odeies e queiras destruir-me. Mas lembra-te, fostes buscar-me e já estavas advertido. Como queres derrotar-me, se continuas a fazer o mesmo que me trouxe até ti? És passivo e queres ser salvo.

O nosso encontro é irreversível. Não sou um castigo, não sou a vingança de Ártemis, não sou um justiceiro social nem um monstro; simplesmente sou a consequência natural das tuas acções e omissões. Só a tua humanidade e inteligência poderiam derrotar-me. O duelo continua…

Imagem: Cena do filme “O sétimo selo”, dirigido por Ingmar Bergmann (1957).

Nesta imagem: Antonius Block é um cavaleiro que descansa numa praia, durante o seu regresso das cruzadas. A morte veio buscá-lo, mas o cavalheiro sugere-lhe um duelo de xadrez. A morte o visitará ao longo de vários dias até a partida chegar ao fim. A peste negra assola a cidade para onde o cavaleiro se dirige.

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