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O Medo ou a Liberdade: uma sociedade Risco-Zero?

Contaram-me a história de uma família que na Consoada se reuniu para celebrar o Natal e que, por precaução, ainda antes do jantar, resolveram todos fazer o auto-teste à Covid. Mas era tal a vontade de se juntarem à volta da mesa que, já iam a meio do bacalhau, quando alguém, numa ida à cozinha, reparou nos testes esquecidos sobre a mesa e constatou que um deles indicava positivo. Preocupado, voltou para junto dos outros e comunicou-lhes o sucedido, mas os objetos de risca vermelha, todos juntinhos, já não permitiam saber a quem pertencia a dupla barrinha. A custo, como manda a prudência e o bom comportamento, todos se levantaram e repetiram o teste, verificando que o maldito positivo pertencia a uma criança, de perfeita saúde e boa disposição. E mais uma vez, ao abrigo da lei interna da prudência, o menino, apesar da sua inocência, foi de castigo acabar o bacalhau para o quarto.

E também sei de outras famílias, cujo medo foi maior do que o entusiamo, e não se esqueceram de olhar as barrinhas dos testes antes de se sentarem à mesa, desfazendo-se Natais e obrigando famílias plenas de saúde a isolar-se, umas refugiando-se na sua casa de férias com crianças e adolescentes tristes e perplexos, outras, com menos sorte, ficando fechadas e amontoadas em pequenos apartamentos.

Este foi talvez, desde há muito tempo, o primeiro Natal em que as pessoas se esqueceram do Pai Natal, dos presentes e do menino Jesus. A riqueza simbólica do Natal tornou-se binária reduzindo o léxico natalício a “positivo/negativo” e, apesar dos quase dois anos de Pandemia, muito conhecimento e muitas vacinas, as filas intermináveis na rua tinham voltado, já não para a compra do papel higiénico, nem para a vacinação, mas para a necessidade de certezas sobre a presença de um vírus no corpo com ausência completa de sintomas… Tão longas foram as filas na rua que, juntamente com testes “positivos” ou “negativos”, foram com certeza algumas constipações para casa.

O medo é uma das emoções mais universais e primitivas do ser vivo, por ter uma função adaptativa de sobrevivência. Perante uma ameaça percepcionada, por exemplo a exposição a um animal feroz, o medo desencadeia comportamentos vários (fuga, paralisação) com o intuito de manter a vida. E o medo é mais contagioso do que a Ómicron, outra das suas funções adaptativas: comunicar ao outro a ideia de perigo iminente. Se ao andar tranquilamente na rua me cruzar com alguém a fugir de cara aterrorizada vou ficar em estado de alerta…

Mas, do ponto de vista psíquico, o medo é frequentemente irracional, muitas vezes associado a fantasias inconscientes sentidas como perigosas, ou a acontecimentos devastadores vivenciados no passado e posteriormente esquecidos (ou negados), que leva a que o sujeito responda no presente a situações de perigo imaginadas e não reais, como acontece no caso do trauma (infantil, de guerra, etc).

Freud mostrou como, quando o sofrimento psíquico é intolerável (pela conflitualidade interna ou pela destruição identitária que provoca), é sujeito a mecanismos defensivos mais ou menos rígidos, que visam excluí-lo da mente. No caso da neurose, o verdadeiro motivo de sofrimento é sujeito ao recalcamento, voltando sob a forma de “retorno do recalcado” através de sintomas (fobias, sintomas obsessivos, etc), enquanto na psicose ele é excluído da mente e projetado no exterior (paranoia). Nas fobias, o medo é objeto de um deslocamento que visa enganar o próprio sobre a sua verdadeira origem. Nas obsessões, a preocupação constante e ruminante visa ocupar a mente para que esta se afaste dos verdadeiros motivos do mal-estar…

Como explicar então este medo e obsessão coletivos com infeções, isolamentos e testes Covid?

Um medo estimulado pela comunicação social que, em jeito de filme de Hollywood, anunciava diariamente, em tom dramático, o perigo do aumento do número de infeções? Ou os internamentos e mortes sem clarificar quantas destas pertenciam a pessoas não-vacinadas ou vulneráveis? O medo “vende” porque, tal como é exemplificado nos filmes de catástrofes, provoca uma atenção redobrada… O medo controla, por isso ameaçamos crianças com o bicho papão para que se tornem obedientes…

Como explicar a excessiva prudência das decisões políticas, que fazem orelhas moucas à voz dos cientistas que reafirmam estarmos a deixar a Pandemia e a entrar numa Endemia, que o vírus não vai desaparecer, que com o tempo os vírus tendem a tornar-se mais contagiosos, mas menos perigosos, que mais cedo ou mais tarde todos iremos ser infetados, que o importante é estarmos protegidos pela vacinação (e, melhor ainda, pela infeção)? Uma prudência para não correr riscos eleitorais? Para esconder outros males sociais e económicos? Para, no caso de Portugal, desviar as atenções do grave estado de saúde do SNS?

E a prudência individual? Não se trata só de obedecer a ordens, mas de não as pôr em causa… Pensar dói, questionar cria conflito interno, dúvida, zanga, revolta, exclusão… Por todo o lado, vindo de pessoas com reconhecida capacidade de pensar, oiço: “Eu já não sei nada, nem quero saber, só quero fazer o que me dizem e que isto passe depressa!” Pensar e questionar a ordem vigente traz risco, o risco de ficar entregue a si mesmo, de ficar sozinho. Mas esse é o preço da liberdade.

É esse o risco que a criança com um ano decide tomar quando começa a dar os primeiros passos, caindo frequentemente no chão, e a de dois anos quando diz “Não” a tudo o que vem dos pais, mesmo áquilo que quer… É esse o risco que correm os adolescentes quando confrontam os pais, ou quando se afastam fisicamente deles, ou quando questionam os seus valores e as suas ideias.

Hoje vivemos num mundo do Risco Zero. Os pais têm medo de deixar os filhos correrem livremente pelo campo, ou de comerem terra, ou de subirem no escorrega do parque infantil e descerem de cabeça para baixo, ou de deixarem as crianças sozinhas numa festa de aniversário, e os adolescentes de apanharem um táxi depois de uma saída noturna.

Filhos da sociedade da abundância (do consumo de objetos e de informação) e da tecnologia – em que tudo está lá, quase antes do indivíduo o desejar, ou procurar – criando uma ilusão de omnipotência e controlo, fica pouco espaço para aceitar o risco de tomar decisões sem tudo saber ou dominar.

Se resolver prender o meu filho em casa ele não vai apanhar infeções virais nem ter outros encontros mais perigosos, mas arrisco-me a matá-lo psiquicamente e de certeza que lhe mato a imunidade e a liberdade.

Algumas sequelas começam já a surgir: centros de desenvolvimento infantil observam maiores atrasos no desenvolvimento da linguagem nos bebés nascidos em 2018… Aqueles que, quando se preparavam para sair para o mundo relacional e social, este fechou as portas…

No ano passado desejei luz ao fundo do túnel. Para este Ano Novo peço à estrelinha dos Reis Magos que traga mais luz interior e liberdade de pensamento.

Imagem: Maria Castel-Branco, “#Sóquenão” (2020/21), cerâmica.

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