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O inconsciente é o infantil

Na obra Notas sobre um caso de neurose obsessiva (1909), também conhecida como a análise do caso do Homem dos Ratos, Freud escreveu: O inconsciente é o infantil. Chamava assim a atenção para a importância do reconhecimento da existência de elementos inconscientes ligados às experiências e fantasias infantis presentes no mundo psíquico dos adultos. Na obra, Freud debruça-se particularmente sobre a rigidez dos mecanismos obsessivos instalados de modo a não permitir a conexão do seu paciente com as suas fantasias e desejos infantis, que permaneciam inacessíveis no seu inconsciente.

No filme O Meu Tio (Mon Oncle -1958 – Óscar de melhor filme estrangeiro), Jacques Tati (1908-1982) encarna a sua personagem emblemática, Monsieur Hulot, tio do pequeno Gérard. É através desta criança que o filme nos transporta para o mundo infantil, invadindo a tela com as suas brincadeiras, ao mesmo tempo que nos revela um certo sentimento de incompreensão que emerge da relação com os seus pais, ambos imersos num funcionamento obsessivo. A caricatura dos pais é introduzida de forma cómica no modo como se relacionam com os elementos da vida quotidiana, como a organização da casa e os instrumentos e objectos que a compõem, ou na relação com o trabalho. O pai é gestor numa fábrica de borracha, aludindo à plasticidade e artificialidade em que o mundo adulto pode ver-se envolvido, reforçando a amnésia da ligação ao seu próprio mundo infantil. A mãe, dona-de-casa caricatura dos anos 1950, é uma senhora de espírito raso com obsessão pela limpeza e amante da modernidade electrónica, manifestando uma tremenda excitação com o controle dos mecanismos eléctricos. Os diversos gadgets inseridos no filme, como o comando eléctrico da garagem, o repuxo que é accionado automaticamente e a cozinha moderna repleta de automatismos, representam bem a tentativa de substituição dos brinquedos infantis pelos brinquedos adultos, (numa recriação caricatural do que actualmente assistimos à nossa volta). O registo obsessivo está patente no modo como os pais se relacionam com os elementos do quotidiano, obedecendo à ritualização de rotinas que eles próprios constroem, encontrando-se também presente no modelo arquitectónico e estrutural da casa, com os seus compartimentos exclusivamente funcionais e a sua rigidez simétrica, na delimitação quadriculada do estacionamento na fábrica, ou através dos comportamentos compulsivos de limpeza e ordenação sistematizada protagonizados pelo casal.

Os pais, fascinados com os seus próprios brinquedos, parecem ter esquecido a verdadeira função de brincar. É Monsieur Hulot que nos vem relembrar a sua importância, transportando-nos, através do humor, para o mundo infantil do disparate e das brincadeiras. É impossível não esboçar uma gargalhada nas cenas em que o adulto é ridicularizado, como nas partidas protagonizadas pelo bando de crianças na rua, ou perante as cenas cómicas das tentativas infrutíferas de o Tio fazer parte do mundo adulto. Assim, a cena na fábrica quando lá procura um emprego que lhe permita ser visto e aceite como adulto, faz emergir e ampliar o seu funcionamento infantil, como se os dois mundos, adulto e infantil, se apresentassem como incomunicáveis entre si, numa clivagem que aprisiona tanto os pais no seu funcionamento obsessivo rigidificado, como Monsieur Hulot na sua faceta infantilizada. Apesar disso, não deixamos de empatizar com este tio, cúmplice de brincadeiras e verdadeiro companheiro do sobrinho. É através desta compreensão empática e do humor que Tati nos relembra a importância de manter viva no mundo adulto a capacidade de ligação ao próprio mundo infantil.

Imagem: Mon Oncle (1958)

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