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O Homem é aquilo que lê

O homem é aquilo que lê Joseph Brosky

O “Cidades Invisíveis” de Italo Calvino, aguarda na mesa aqui ao lado para que eu possa continuar a viagem imaginada de Marco Polo, em fantásticos relatos, pelas maravilhosas cidades com nome de mulher. Para trás acabaram de ficar “Uma mulher desnecessária” de Rabih Alameddine, que me emprestou por uns dias a companhia de uma mulher, incógnita mas fascinante, no coração de Beirute, e “O Alegre canto da perdiz” de Paulina Chiziane, um mergulho na imensidão da Zambézia e na história do negro e do branco no continente africano.

A vontade de vos falar dos livros é imensa. Destes e de outros já lidos: “O coração é um caçador solitário” de Carson McCullers; “O verão sem homens” de Siri Hustvedt; “Pequenas Cadeiras vermelhas” de Edna O’Brien (tão difícil selecionar só um de Edna O’Brien); “Perguntem a Sarah Gross” de João Pinto Coelho; “Crónicas do mal de amor” de Elena Ferrante; “Eliete” de Dulce Maria Cardoso (ou deveria antes referir “O Retorno”?); “Balada para Shopie” de Filipe Melo e Juan Cavia (ou “Os Vampiros”); “A Porta” de Magda Szabó; “A quinta dos animais” de George Orwell (na magnifica versão ilustrada da Cavalo de Ferro); Fiódor Dostoiévski; Philip Roth; Primo Levi; Juan José Millás; Kazuo Ishiguro; José Saramago; Claudia Piñeiro; Shirley Jackson (…)

Vozes de vários continentes e de várias épocas, com candências e sonoridades próprias, tradutores do seu tempo, da sua cultura e da sua ideologia, mas a cima de tudo, do pensar humano.

As escolhas são pessoais, assim como o é a leitura da obra, e dirão mais do leitor do que do escritor.

Ler é um namoro com as palavras. Na literatura vive a arte de trazer aquilo que o pensamento não alcança, um repor constante da falha da omnipotência, o deslumbre com as possibilidades imensas da tradução dos afectos. Autores como Edna O’Brien têm a capacidade de nomear o indizível, o mais profundo da crueza humana, de transformar a complexidade afectiva e lexical, numa profunda e transformadora experiência estética.

Os livros permitem-nos recolocar os afectos, reviver amores, dores, desejos. Diria que são eles, os livros, que me analisam, mais do que o contrário, que me fazem regressar à experiência analítica pessoal, obrigam-me a visitar-me, a perceber o que se passa em mim, ao mesmo tempo que me permitem através das narrativas de outros personagens, mais ou menos ficcionados, conhecer o mundo, não só pelos factos, mas pelo ressoar emocional. São um espelho, ou uma lente de aumento, que me permite uma melhor percepção de mim mesma e do mundo.

A descoberta de leitores com afinidades literárias tem vindo a revelar-se uma porta de entrada para o universo do outro. Partilhar/discutir/aconselhar um livro é partilhar toda uma experiência subjectiva em que nos revelamos nos ecos sentidos e nas interpretações/leituras efectuadas.

Compreendo, à medida que vou escrevendo, que falar-vos de livros é falar-vos de afectos. Como o é falar de toda a experiência estética.

No dia de aniversário do meu irmão mais velho, no inico do mês de Junho, cumpria-se todos os anos um ritual. Depois do jantar íamos os cinco à cidade passearmo-nos por entre os expositores da feira do livro de Lisboa. É uma recordação que acarinho desde a mais tenra infância. Os livros eram para mim o mundo intrigante e algo inacessível do meu pai. Da feira lembro os degraus que em pequena me permitiam chegar aos livros infantis, do incentivo da minha mãe a novas leituras à medida que os anos iam passando, de partilhar com a minha irmã a colecção completa dos livros da “Patrícia”, cuja leitura era viciante estendendo-se às vezes noite dentro com uma lanterna debaixo dos lençóis. E nos tempos em que as férias de verão eram imensas tinha os dias recheados de livros.

Posso dizer-vos, com segurança, que os livros (alguns, não todos!) me foram dando mundo e abrindo possibilidades para me vir a tornar o que sou hoje. Que na literatura, como no encontro terapêutico, se estabelece entre quem narra e quem “escuta” uma relação de leitura. Que a narrativa é tecida não só com a complexidade das palavras, mas também com fios silenciosos dos afectos e das experiências subjectivas vividas.

Este verão vou levar comigo alguns livros que passo a partilhar convosco. Não quer dizer que os vá ler todos, nem que não acabe por pegar em outros. Os livros são como uma peça de fruta a ser escolhida conforme o apetite, são para saborear com prazer: “Viagens” de Olga Tokarczuck; “O homem da forca” de Shirley Jackson; “Filho da mãe” de Hugo Gonçalves; “As mulheres do meu pai” de José Eduardo Agualusa; “Fome” de Knut Hamsun; “Torto Arado” de Itamar Vieira Junior; “Os peixes não têm pés” de Jón Kalman Stefánsson.

Os livros mencionados neste texto:

Cidades Invisíveis – Italo Calvino Uma mulher desnecessária – Rabih Alameddine O Alegre canto da perdiz – Paulina Chiziane O coração é um caçador solitário – Carson McCullers O verão sem homens – Siri Hustvedt Pequenas Cadeiras vermelhas – Edna O’Brien Perguntem a Sarah Gross – João Pinto Coelho Crónicas do mal de amor – Elena Ferrante Eliete – Dulce Maria Cardoso O Retorno – Dulce Maria Cardoso Balada para Shopie – Filipe Melo e Juan Cavia Os Vampiros – Filipe Melo e Juan Cavia A Porta – Magda Szabó; A quinta dos animais – George Orwell Viagens – Olga Tokarczuck; O homem da forca – Shirley Jackson; Filho da mãe – Hugo Gonçalves; As mulheres do meu pai – José Eduardo Agualusa; Fome – Knut Hamsun; Torto arado – Itamar Vieira Junior Os peixes não têm pés – Jón Kalman Stefánsson

Imagem: Da autora

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