“Guerras, pandemias e catástrofes não mudam nada,
apenas aceleram aquilo que já lá estava”
(Carlos Magno, jornalista)
Há momentos em que dou por mim a ter saudades da Pandemia, ou melhor, do Confinamento, porque das máscaras não tenho saudades nenhumas (a minha relação com as máscaras foi sempre daquelas relações impostas, nunca escolhidas, que se deixam sem olhar para trás...)
Aquilo de que eu tenho saudades não é, obviamente, do isolamento social, nem da falta de abraços, nem da impossibilidade de viajar e contactar com o resto do mundo, um mundo diverso, misterioso e exogâmico, à espera de ser descoberto.
Sinto falta, sim, do esvaziamento e recolhimento pandémico num mundo que nas últimas décadas se tornou tão cheio, tão excessivo, tão consumista, que chega a provocar indigestão...
É assim parecido com a sensação que tenho quando (raramente) vou a um hipermercado, ou a um grande centro comercial: ora fico perdida no meio de tanta coisa sem saber o que escolher, ora por vezes me sinto como se tivesse acabado de chegar da aldeia, como “boi a olhar para um palácio”, um “palácio” a transbordar de objetos de consumo...
Mas não são só os objetos que se consomem, também a cultura e as viagens podem ser freneticamente consumidas - cidades e países colecionados onde se poisa um só dia, sem nunca se tornarem experiências internalizadas e pensadas (e sonhadas!).
Ou o excesso de filmes, de séries, de canais de televisão, de streaming ilimitado, de livros que cada um faz questão de publicar, quer tenha interesse para a comunidade, quer exclusivamente para a vaidade do próprio.
E até a relação com os outros se pode tornar consumista, através da proliferação viral de grupos WhatsApp, de conversas intermináveis onde cada pensamento é imediatamente descarregado. Ou dos milhares de amigos nas redes sociais, onde tantos fazem questão de partilhar o seu Eu à superfície - o que fazem, o que comem, os seus filhos e animais de estimação -, mas não o que pensam, em troca de uns tantos “likes”...
Se eu fizesse uma “visita guiada” a um extraterrestre dir-lhe-ia: “Se quiseres ter muitos ‘likes’ partilha tudo o que seja inócuo (paisagens, selfies, filhos, comida) e que não solicite qualquer questionamento, mas não partilhes pensamentos, opiniões, ou a divulgação de objetos culturais passíveis de criar conflito interno e novos pensamentos”.
E finalmente, olhando agora a Psique, recentemente surgiu o excesso de categorias de género, mais de trinta, com múltiplas combinações matemáticas que cruzam sexo biológico (F, M, intersexo), “expressão de género” (homem, mulher, não binário), “identidade de género” (cisgénero, transexual) e “orientação sexual”... Como se de repente surgisse uma estranha necessidade de nos diferenciarmos através de etiquetas identitárias. Como se a humanidade do século XXI já não fosse capaz de suportar a ambiguidade, a indefinição, o mistério, o desconhecido...
Uma humanidade que, curiosamente, sempre conviveu tranquilamente com a bipolaridade de género (note-se como o nosso cérebro, assim como a linguagem informática, representa o mundo em pares de opostos - bom/mau, bonito/feio, grande/pequeno...) - em pacífica coexistência com a diversidade psicológica (milhões de seres humanos todos diferentes uns dos outros), sem que seja preciso dar-lhes um nome...
Uma necessidade de criar categorias capazes de conter a perigosa confusão num mundo de excessos?
Note-se que aqui não se trata de categorizar a realidade, como faz a ciência, por exemplo quando diferencia raças ou sexos biológicos, ou diagnósticos mentais – através dos comportamentos ou sintomas ou organizações da personalidade - mas de categorizar o subjetivo, o que eu sinto: “Sou Trans porque não estou tranquilo com o meu sexo biológico”, “Sou bissexual porque não sei para que lado me virar...”?
Trata-se, além disso, de categorias relativas a uma pequena parte da nossa identidade – o género sexual – deixando todo o resto da personalidade de fora, o que me evoca os funcionamentos obsessivos que, para lidarem com a confusão emocional, se focam (isolamento) numa pequena parte da realidade...
E finalmente, um mundo que confunde conceitos como "direito à igualdade de género” (homens e mulheres deverão ter os mesmos direitos sociais, profissionais, políticos) com “liberdade de género” (cada um escolhe o género que lhe apetecer).
Atrás de um mundo aparentemente preocupado com o respeito pela diferença e aceitação da diversidade, esconde-se um mundo ditatorial, que obriga o adolescente à procura de si mesmo a rapidamente se definir (antes só tinha que decidir se era do Benfica ou do Sporting...), um jovem, política e culturalmente forçado a nomear-se como hétero ou homo ou bi ou trans...
Um mundo que alterou os antigos modelos adolescentes – como os músicos e os atores -destinados a tomar o lugar dos modelos parentais, obrigatoriamente descidos do pedestal, e que os substituiu por centenas de “Influencers” digitais, anónimos, com uma carinha “laroca”, que dizem umas “larachas”, e colecionam likes, roupas e viagens, e euros ou dollars... “Quando for grande quero ser “Influencer” para viajar muito e ficar rico...”, eis o novo modelo de felicidade para muitos adolescentes!
Talvez não seja em vão que durante o primeiro confinamento muitos de nós imaginámos que a Pandemia tinha vindo para mudar alguma coisa na humanidade...
Saudades de um tempo de recolhimento, da ausência dos objetos a consumir porque as lojas estavam fechadas, da ausência do excesso de turismo (e do barulho dos tróleis na calçada) porque as pessoas não viajavam, nem se preocupavam com a última moda, ou com a melhor operação estética (para mamas, rabos e afins) e outras frivolidades, porque uma preocupação maior tinha ocupado as mentes: já não um bem acessório das sociedades de consumo, mas um bem essencial - a saúde.
Há umas semanas, assistindo na televisão à terrível (absurda, revoltante, inaceitável) Invasão da Ucrânia, bombardeada nas cidades, mas também na comunicação social, chamou-me a atenção - por entre intermináveis testemunhos sofridos de pessoas que tudo tinham perdido (e que os telejornais fazem questão de fazer render) - as palavras de uma mulher, talvez com cerca de 60 anos, que respondia ao jornalista: “É terrível, mas isto mostra-nos aquilo que é essencial, o que vale a pena, dá um sentido...”
Se Bion estivesse vivo viria cá para fora, para as redes sociais, gritar a bom som:
"Caros colegas psicanalistas, é preciso lembrar aquilo que vos tenho falado há tantos anos, gritá-lo neste mundo - o conceito do ‘Negativo’! O Pensamento surge da ausência, o Conceito nasce perante a falta do objeto!
O bebé constrói a representação de seio quando ele não está lá...
A criança torna-se criativa quando não está afogada no meio de milhares de brinquedos, e assim consegue transformar um tupperware num capacete, ou uma mola da roupa partida num soldadinho de chumbo...
O adolescente precisa de ausência de internet ilimitada para se poder aborrecer de morte no sofá durante as férias, e ter novas ideias sobre o que quer ser no futuro...
O adulto precisa de recolhimento, de se preocupar menos com o corpo, com o invólucro, com o que come ou deixa de comer no sentido literal, e preocupar-se mais com o alimento espiritual - ler, pensar, ouvir música..."
O texto já vai longo, e ainda ficou por falar da pseudo-moralidade do “politicamente” correto”, que este texto falha redondamente. Mas não faz mal, fica no ar, para quem a quiser pensar.
Imagem: Valpapers, "Messy Teddy" (2018)
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