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Rita Marta

O Beijo


Quem diria que um beijo, no meio de tantos abraços, suor e lágrimas, poderia ser tão destrutivo e levantar vozes tão condenadoras no seculo XXI?


Recentemente assistimos à crucificação social de um presidente da Federação de Futebol Espanhol porque, após a vitória da sua equipa e perante a alegria, entusiasmo, e recompensa do esforço inerente a uma prova desportiva de competição, deu um abraço apertado na capitã de equipa, ao qual se seguiu um beijo impulsivo. Aquele beijo (um “chocho” entusiasmado, como se dizia...) foi logo tomado como um beijo de assédio, de poder, de desrespeito, inflacionando feministas que tomaram o mesmo como mais uma manifestação de machismo na sociedade (e quiçátambém, aproveitado por invejas alheias, ou questões políticas, para correrem com o culpado do seu lugar de poder...)


É claro para todos que tal não deveria ter acontecido, que não é suposto acontecer em público um beijo entre um presidente e uma jogadora, e que o mesmo deveria ter sido dado mais ao lado, ou substituído por um “Give me five”... Por isso Rubiales pediu desculpas publicamente. Mas de nada lhe valeu, o tribunal público foi implacável...


É também provável que haja outras questões que o público desconhece.

Mas fará sentido o linchamento público de um beijo como manifestação espontânea de alegria, lado a lado com outros atos tais como o roubo público, a manipulação, a mentira?


Pergunto-me também se muitos dos que aplaudiram junto do pelourinho, se deram ao trabalho de olhar este caso “sem memória, sem desejo, sem compreensão” (Bion). Aquilo que se vê nas imagens é um beijo-abraço, vigoroso e de partilha, de uma recompensa de um esforço e sofrimento partilhados. Não é um beijo erótico, demorado e lânguido, nem o olhar mostra qualquer desejo, e muito menos poder sobre a sua vítima do sexo feminino... Pelo contrário, mais do que o beijo de um homem, parece-me um beijo de um miúdo aos saltos perante a vitória, o “gesto espontâneo” (Winnicott) de uma criança ainda sem constrangimentos sociais.

E, curiosamente, foi assim que também foi recebido pela interlocutora que, inicialmente, veio dizer que nada tinha a opor ao gesto, tendo inclusive brincado com o sucedido junto das suas colegas (como mostra um vídeo). Mas posteriormente, perante tantas outras interpretações “colocando” intenções negativas, de assédio, naquele beijo por “terceiros” que, apesar de não terem dado nem recebido o dito beijo, pareciam saber tudo sobre o mesmo, a “vítima“ começou duvidar de si...


Conheço várias pessoas, do sexo feminino que, tendo feito desporto de competição, me descreveram a relação do treinador com as atletas: um treinador-pai, com um erotismo “simbólico”, de cariz edipiano, que funciona também como um motor de envolvimento numa atividade que implica uma grande dedicação e esforço. Poderemos imaginar que foi também este o caso? Talvez por isso Rubiales disse publicamente ter-se tratado de um “beijo paterno”?


Onde eu (e outros) vimos a “inocência-abraço” daquele beijo, parece que uma sociedade viu “maldade” e “assédio”. Imagino que repercussão isto não terá sobre todos os treinadores homens na sua relação espontânea com a equipa feminina, inibindo a espontaneidade na relação desportiva, pelo risco de serem decapitados pela sociedade, tal como eu, ao escrever estas linhas, corro também esse risco.


Mas como cidadã e como psicanalista, não posso deixar de escrever algumas palavras sobre esta sociedade cada vez mais puritana (e hipócrita) do seculo XXI, uma sociedade que quanto mais se afirma inclusiva e tolerante, mais condena a cada esquina.

Condena nos gestos e nas palavras. Condena, atribuindo intenções agressivas, de ataque/poder sobre o outro (sexual ou não). Já não se pode dizer preto sem ser chamado racista, um homem mais poderoso não pode olhar (com agrado) uma mulher sem ser chamado de abusador, e até tivemos de passar a dizer “fila” a uma bicha de carros, para que não se confunda com os homens homossexuais... A literatura é manipulada, como aconteceu com grandes obras como os policiais de Agatha Christie ou os livros infantis de Roald Dahl, para evitar que a linguagem se torne ofensiva. Quando se diz que uma linguagem é ofensiva está-se, naturalmente, a atribuir uma intensão agressiva ao seu autor, e um olhar de vítima sobre o leitor.


Se é verdade que ainda não podemos dizer que temos uma sociedade ocidental completamente igualitária entre homens e mulheres (no trabalho, na política, etc), parece-me que este feminismo inflamado na atualidade, numa sociedade progressivamente mais igualitária, só pode ter outros sentidos...

Porque será que a questão do machismo paira nas cabeças de tantos? Porquê o receio do poder do homem em pleno século XXI, cujo desejo é tomado como tentativa de domínio da mulher? Espero que alguns resistam a esta pressão social, ou teremos cada vez mais homens desprovidos de Falo, que perguntam dez vezes a uma mulher antes de avançar… Ou pais que se inibem de dar uma palmada no rabo da sua filha pequena, com receio de serem chamados de pedófilos. Ou professores de Educação Física no secundário que, para ajudarem nos exercícios, se permitem tocar nos alunos do sexo masculino, mas limitam-se a usar a voz com as do sexo feminino, verbalizando o receio de serem tomados como abusadores...

Que olhar atual é este que vê sexo e abuso de poder em cada toque?


Os tempos da Simone de Beauvoir eram outros, e todo o seu discurso ("O Segundo Sexo", 1949) fez sentido e foi fundamental numa época repressora e de grandes desigualdades de género. Ideias "feministas" que foram retomadas nos movimentos sociais de Maio de 1968, e seguidas do "amor livre"... Agora vivemos numa sociedade que, pelo contrário, condena o amor (Eros) e atribui intenções de hostilidade (Thanatos) a cada gesto, atacando assim a espontaneidade e a verdade.


No puritanismo do século XIX, de origem judaico-cristã, era a moral e os bons costumes que estavam em causa, como tão bem se vê nos livros da Jane Austin. Não se podia mostrar o tornozelo nem manifestar o desejo abertamente. Em termos psíquicos, a pulsão sexual era sujeita à repressão, como ilustram as grandes histéricas do tempo de Freud, de onde partiu a sua formulação teórica. O “Superego” era o grande puritano que não permitia corromper os bons costumes, trazendo a condenação e a culpa.

Mas se no puritanismo vitoriano era a expressão do sexual que era interdita e condenada, o puritanismo atual, que vê intenções maldosas e agressivas (seja na sexualidade, seja no racismo) em todo o lado, parece-me ser de outra ordem. Um puritanismo da ordem já não da repressão, mas da projeção.


É aquele que em vez de ver um ato de alegria e reconhecimento no presidente, vê um ato de poder. É aquele que vê xenofobia e racismo na espontaneidade se de dizer preto, é aquele que ataca e perverte a literatura, alterando palavras como “gordo”, e substituindo por “grande”. É aquele que se vê inibido de atribuir género nas palavras, ou na relação com o outro, para evitar o risco de ofender o seu sentimento identitário...


Que sociedade é esta que, se diz mais tolerante, mais inclusiva, mais humanista, mas que vigia, que condena, que atribui intenções maldosas? Por outras palavras, e em linguagem psicanalítica, de onde vem este movimento projetivo, que por definição está ligado à evacuação de maus objetos que o próprio se recusa a aceitar? Estará a Sociedade a tornar-se menos neurótica e mais esquizo-paranóide?


Como pensou Hannah Arendt na "Banalidade do Mal", a propósito do Nazismo, alguns são maus, mas a grande maioria segue o grupo sem questionar. Talvez também aqui alguns tenham colocado no “beijo” questões internas intranquilas, outros tenham aproveitado esta condenação em seu benefício, e outros ainda a tenham seguido, cegando-se, para não se sentirem sozinhos...


Imagem: Klimt, "O Beijo" (1907-1908)

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