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Maria Teresa Sá [Psicanalista]

O amor redime o mundo diziam eles/ mas onde está o mundo senão aqui?

Setembro 2015: Alan Kurdi, o menino encontrado morto numa praia da Turquia, desperta a nossa consciência adormecida para os que tentam chegar à Europa escapando às guerras, às perseguições e à pobreza. “Se esta imagem não mudar as atitudes da Europa com relação aos refugiados, o que mudará?”, questionava o jornal britânico Independent.

Agosto 2017: Omran Daqneesh, o menino de cinco anos sentado no banco de uma ambulância, de olhar atordoado e com o rosto coberto de sangue, ferido num ataque à cidade síria de Aleppo, desperta-nos de novo.

As crianças têm o poder de fazer caminho pelos meandros do nosso mundo interno e despertar um sonho de humanização adormecido. As crianças mortas na guerra têm o poder de nos desagasalhar e trazer o desamparo inicial ao qual apenas sobrevivemos porque nos refugiámos em alguém que nos acolheu e cuidou de nós.

São perto de 30 000 as pessoas abandonadas à sua morte no fundo do mar mediterrâneo. Catorze milhões, os refugiados na segunda Grande Guerra. Lembrar, elaborar, não repetir?

24 Outubro 2019: o Parlamento Europeu vota sobre os mecanismos de proteção de vidas no Mediterrâneo. A proposta de salvar vidas é chumbada por dois votos. A decisão inclui que pessoas e organizações que trabalham para salvar vidas devem ser criminalizadas, que é retirado o apoio às missões de salvamento e resgate, que deixará de se assegurar um desembarque seguro, que se manterão os campos de detenção, que terminará a cooperação entre os países para receber quem chega.

Somos Omran Daqneesh, feridos e atordoados diante do ataque aos princípios mais básicos da dignidade e proteção da vida humana consagrados pelo direito internacional. Horrorizados, ouvimos de novo o Viva la Muerte na celebração e nos gritos entusiásticos da bancada da extrema-direita. Morremos todos nesta praia em Estrasburgo.

Abril de 2017: Abd Alkader Habak, fotógrafo e ativista sírio, está em Aleppo quando um bombista suicida fez explodir uma camioneta. “A cena foi horrível, ver crianças a chorar e a morrer à minha frente” (…) então decidi que iríamos pousar as máquinas e começar a resgatar os feridos”. A primeira criança que Habak tentou ajudar estava já morta. Correu para ajudar outro rapaz, via que o rapaz fazia esforços para respirar, então pegou nele ao colo e levou-o para uma ambulância. “(…) Esta criança estava a agarrar a minha mão com força e a olhar para mim“. Diante de outra criança morta caiu a chorar. A imagem mostra Habak de joelhos e com a máquina fotográfica ainda na mão.

Os fluxos migratórios são o reflexo do estado do mundo: desigual, cruel, inseguro. Marchas de milhões de pessoas em busca de um lugar que as ponha ao abrigo da miséria económica ou da insegurança física. Testemunhas do sofrimento e da morte, estes homens, mulheres e crianças, exprimem da forma mais pungente as exigências da dignidade humana.

O que está em causa não é uma “crise dos refugiados”, é uma “crise do acolhimento, da solidariedade, de humanidade”. Um tal abandono dos nossos iguais não pode deixar de lembrar o desamparo da criança à qual ninguém vem responder. Responder é ligarmo-nos a Eros e combater a morte. De todos Nós. Como Habak, largar o registo interpretativo do mundo e partir até ao final do Canto Telegráfico: “O amor redime o mundo diziam eles/mas onde está o mundo senão aqui?” (Mário Cesariny).

Imagem: Maria Teresa Sá

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