– Tens uma casa?
– Queres dizer uma casa com quatro paredes e um espaço?
– Não, uma casa na cabeça.
Alexandro Baricco, Trois fois dès l’aube
Caminho por este canto do mundo de que nos fala Alexandro Baricco.
Uma crise, momento de rutura brusca na homeostase psíquica e social, revela sempre uma história, as suas fraturas e os seus acidentes, construções realizadas e deficitárias. O desfecho dependerá quer de factores internos, recursos pessoais disponíveis, quer de factores externos, suportes emocionais e sociais de que o individuo possa dispôr. O que verificamos que agora faz falta e (nos) falha, possivelmente já fazia falta e já falhava. O que está bem construído, permanece e dá suporte.
O confinamento obrigatório, aquele a que nos obrigámos ou aquele onde nos desejámos abrigar, pode ter trazido à superfície, na ausência do ruído dos dias, o que está lá no fundo e também uma fenda por onde tenha entrado a luz de um maior conhecimento.
Mas a compulsão à repetição é muito forte e continua a ter a mesma humana morada. Aspectos ligados à vida ou à destrutividade, à criatividade ou à inércia, à confiança ou ao afundamento, à solidariedade ou à indiferença, à liberdade ou ao medo, a pontes ou a muros, permanecem, tanto nas pessoas como nas sociedades.
Estou só, muito aflito, precisava de falar com alguém, por isso liguei. Percebo como o confinamento numa casa com quatro paredes e um espaço pode, afinal, ser tão inseguro e desabrigado quando uma casa na cabeça se mostra insuficiente para conter e apaziguar a angústia do que não se vê. Pelas palavras, breves e transitórias, ligamo-nos num canto do mundo e pomos em marcha um pensamento que se isolou. Escuto a importância das redes de suporte familiar e social, teto que sustém e que abriga nas intempéries. Escuto a preocupação com a sobrevivência, o desemprego, a incerteza. É também esta endogamia caseira estéril e regressiva, vida em suspenso, o que deprime, porque o ser fica enlaçado numa teia de interioridade paralisante e apartada do mundo. É que o humano, Homo faber, para viver, criar e respirar, precisa de se enlaçar com o Outro e de se saber a contribuir para esse Mundo Grande.
Durante estes meses aconteceram muitas reflexões, alguns afirmam mesmo que foram tocados por pensamentos mais profundos sobre o sentido da existência. Cada qual sabe de si. Pessoalmente não me parece que este tempo breve, que nos pareceu tão longo, tenha sido de molde a alterar substancialmente cada um de nós e a humanidade no seu conjunto, no sentido de um acréscimo de sabedoria. O medo é sempre mau conselheiro nestas aprendizagens e a mais das vezes reforça mecanismos de defesa primitivos e pouco solidários em relação ao próximo, ao invés de colaboração e reflexividade consistente e continuada.
Também não me parece que tenha surgido um novo psiquismo ou novas problemáticas em saúde mental. Houve picos de ansiedade, solidões agravadas, ao lado de momentos felizes muitas violências caseiras, agravaram-se sintomas, emergiram angústias e defesas e, sobretudo, ficou a nu o imenso desamparo em que muitas pessoas se encontram para organizarem a sua vida interna.
Penso que os abraços continuarão, e os beijos e a(s) festa(s) e tudo o resto, excepção feita para os que por razões da sua estruturação psíquica e psicossexual, se sintam mais seguros à distância do outro e de si mesmos. Nada de novo, portanto.
Penso, contudo, que esta crise teve o mérito, tristemente pago com milhares de mortes, de colocar uma sociedade a olhar-se ao espelho na forma como trata os mais velhos. Sem Covid-19 as imagens dos lares-depósitos não nos saltariam aos olhos de forma tão pungente, indecente e desabrida e continuariam a ser esquecidas na poeira dos dias ou dos álbuns de família. Possivelmente tudo continuará como dantes, possivelmente mais desinfetado, mas os nossos olhos já viram. A cegueira que se seguirá será da responsabilidade de todos nós.
Observo igualmente um certo imediatismo da resposta. Bastou um mês para que se pandemenizasse a ideia de que “o futuro será a partir de agora o teletrabalho” ou “as relações à distância” ou um “novo modelo de tecno-escola” ou “um humano modificado”. Nem o movimento psicanalítico, regra geral mais reflexivo e ponderado, habituado a transformar beta em alfa, parece ter escapado a esta velocidade estonteante com que o presente se torna eternidade. Há quem tivesse avançado que seria o momento para reequacionar ideias e conceitos fundamentais da psicanálise, diante de uma “nova realidade psíquica emergente” e de uma “provável transição sociocultural”. Sucederam-se Webinars, síncronos e assíncronos, sobre uma vasta panóplia de temas com Covid-19 à mistura. Apesar de termos constatado que também são possíveis e até, para alguma surpresa, interessantes, não creio que os atendimentos à distância venham a ser o novo paradigma da psicoterapia ou da análise, a não ser em situações particulares ou para aqueles que se sintam mais confortáveis com essa forma.
Aspiro a um pouco de calma e lembro o conceito de quadro, de como revela a sua pertinência de cada vez que a experiência de um sujeito é a de uma descontinuidade ou de uma rutura, de uma ameaça à sua identidade. Manter uma continuidade na descontinuidade, garante uma suficiente segurança psíquica para que o sujeito possa assumir a incerteza da mudança, com que tem de se confrontar para crescer. Desejo um pensamento complexo, humano, informado, racional, vagaroso. Desejo que em tempo de marés revoltas os barcos continuem a navegar, senão com terra à vista, com bússola.
Imagem: Maria Teresa Sá (aguarela)
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