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Nas entrelinhas dos livros

A Porta (1), romance da húngara Magda Szabó, narra a estreita relação que se estabelece entre duas mulheres na Hungria dos anos do pós-guerra: Magda, uma jovem escritora, e a sua empregada, Emerence, uma camponesa analfabeta.

Esta relação entre duas mulheres tão desiguais abre-nos espaço de pensamento. Ler um romance é, quando ele é bom, uma viagem que em muito extravasa a história contada. Dá-nos acesso a áreas não saturadas da mente, permite-nos novos encadeamentos, com sorte, algum insight.

Neste livro surge a personagem Emerence, omnipresente e simultaneamente incognoscível. É dela “a porta” que dá nome a este livro. Uma porta intransponível.

Há em cada um de nós uma parte, geralmente escondida e devidamente policiada por uma estrutura super-egoica equilibrada, que nos faz entender esta mulher. Nela exuberante. A teimosia, o desaforo, a falta de filtro, a ostentação de uma sobranceria nascida de um puro narcisismo infantil, e de toda a fragilidade que sabemos existir na falha narcísica.

Mas Emerence traz-nos também um passado de que não podemos fugir. Ela é a história antiga de um povo. Condensa em si as batalhas e as atrocidades. Traz nela o horror sem nome, aquilo a que apenas podemos aceder parcialmente sob a pena de um desmoronamento psíquico, metaforicamente abordado no final do livro de uma forma magistral. Ela é “A Verdade” e por isso não há outra escolha senão amá-la. Por mais crua, violenta, excruciante que seja. Um portento de força, não entendida, mas aceite, inevitavelmente respeitada.

A porta… separa o mundo de tudo isto que é Emerence – e por isso o interior é inacessível. Inalcançável. Como inacessível é o Amor, a História, o Horror, a Verdade. Este livro fala-nos da impossibilidade de aceder, de saber, de uma verdade histórica e pessoal que nunca poderá ser contada nem entendida na sua globalidade, mas que nos acompanha, umas vezes muda, outras gritando, e que ecoa visceralmente sem fuga possível.

A literatura é por si só tradutora de não ditos. Lemos porque as histórias contadas nos acrescentam. Não só pelos factos narrados, mas pelo que misturamos da nossa história com as entrelinhas da narrativa, pelo que intuímos, pelas identificações múltiplas, na sua maioria das vezes silenciosas, a que nos permitimos. Pelas portas até então fechadas que se entreabrem, às vezes apenas uns milímetros, mas o suficiente para entrar alguma luz.

E pergunto-me também porque escrevemos. A livraria Lello lançou em Abril um concurso a que chamou “contos da quarentena”. Os contos deveriam focar-se nas experiências individuais deste período excepcional. A participação excedeu todas as expectativas. 5.655 concorrentes de 39 países diferentes, entre os quais Argentina, Canadá, Costa do Marfim, Etiópia, India, Japão, Nova Zelândia, Uruguai (2). Chegaram histórias de todos os cantos do mundo. Uma delas saiu aqui de casa, e está guardada numa das pastas do meu computador. Por isso pergunto porque escrevemos, também nós que “não somos escritores”. Que verdade procuramos nas entrelinhas das nossas próprias palavras. Mais de 5.600 pessoas procuraram entender-se, neste contexto novo e totalmente desconhecido, traduzindo-se em palavras escritas. Muitos mais milhares o terão feito fora deste concurso.

Acredito que nos falte ainda o distanciamento para poder intuir “A Verdade” e traduzi-la nas entrelinhas de um romance.

Essa tarefa ficará para uma outra Magda Szabó (3) , que traduzirá, a seu tempo, por entre as páginas de um livro, a inacessível verdade histórica do início do século XXI.

  1. “A Porta” (1987) Magda Szabó – publicado em Portugal pela editora Cavalo de Ferro

  2. Fonte – Expresso on-line de 08 de Junho de 2020, artigo de Joana Ascenção.

  3. Magda Szabó (1917-2007) escritora húngara e uma das vozes mais importantes da literatura europeia do século XX

Imagem: “Estátua do escritor anónimo”, Budapeste, A estátua representa o autor do “Gesta Hungarorun” (1200), o primeiro relato escrito da história do povo húngaro, cujo nome é desconhecido.

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