Nanni Moretti é um dos mais pungentes realizadores do cinema contemporâneo. Na sua longa filmografia, num registo mais cómico ou sóbrio, figura sempre uma oportunidade de reflexão sobre a interioridade psicológica do humano. Mesmo quando procura retratar movimentos socio-políticos e/ou histórico-culturais, a sua lente nunca deixa de se voltar para o universo afetivo do homem. Interessa-lhe pensar a vida humana, nas suas várias matrizes que se entrelaçam dinamicamente no que afeta o Homem, o (des)constrói na esfera mais íntima e alargada, no psicológico e social, na sua ética e moral.
Nos seus filmes “O quarto do filho” (2001) e “Minha mãe” (2015) Moretti aviva o seu interesse na investigação da dimensão psíquica humana, explorando, sabemos que também por razões autobiográficas, o impacto catastrófico da perda real de relações familiares significativas. Mas é no seu último filme – Tre piani (Três andares), a meu ver, que o realizador afirma o paradigma da “interioridade” do sujeito humano e do seu papel determinante na experiência de vida subjetiva. A trama é realizada de forma a que Moretti, caminhando pela realidade interna e externa das personagens, numa sequência temporal e espacial de uma certa abertura, possibilite que o inconsciente de cada protagonista se suscite na tela. Enquanto nos filmes anteriores o trauma psíquico é abordado mais no sentido lacaniano do Real (le Réel), em Tre piani é iluminado o trauma interno, o peso do fantasma (da angústia, do conflito psíquico) inconsciente das personagens que, organizando-se na sua historicidade, influencia o seu vivido presente, assumindo um papel importante na (dis)funcionalidade do Eu.
A trama gira à volta de um grupo de inquilinos de três andares de um prédio de Roma e inicia-se a partir de um conjunto de acontecimentos dramáticos na vida destes protagonistas: no acidente rodoviário de um jovem (Andréa), filho de uma casal de juízes que, alcoolizado, atropela e mata um peão à porta do prédio onde mora com os pais, entrando com o carro pelo prédio adentro; uma mulher (Mônica) em início de trabalho de parto, que apanha um táxi para ir para o hospital dar à luz o seu primeiro filho, e um homem (Lúcio) que, deixando a filha de seis anos com um vizinho idoso enquanto vai ao ginásio, se depara com o fato do idoso e da filha menor se terem ausentado de casa do idoso e se encontrarem perdidos por umas horas.
Possibilitando-nos assistir à trajetória de vida dos anos ulteriores das personagens, na esfera psíquica e social, o realizador põe-nos em contato com o impacto que cada um destes acontecimentos tem na experiência subjetiva de cada um dos protagonistas, trazendo luz, no lidar individual com o desamparo que cada acontecimento suscita, ao que constitui a sua principal fonte de desamparo: os fantasmas inconscientes de cariz traumático que habitam cada um deles.
Em Mônica, a jovem mulher que enfrenta a difícil experiência da sua primeira maternidade sozinha, com um marido abandónico que trabalha fora e se mostra insensível ao seu desamparo e solidão, assistimos ao desvanecer da sua saúde, ao processo progressivo de desmoronamento psicótico em que, a certa altura, a solução psíquica que consegue para escapar à sua agonia é delirar, procurando, de uma forma inconsciente através dos delírios que constrói, “salvar-se” da sua profunda solidão e desamparo. Mas Moretti acede-nos ao que parece ser a fonte originária principal do seu desamparo, ao fantasma de enlouquecer como a mãe (doente psicótica) ligado a uma possível identificação a uma mãe ausente psiquicamente o que, provavelmente, contribui para que na sua vida se mantenha refém de um marido ausente e frustrante.
Em Andréa, jovem problemático com comportamentos auto e hetero-destrutivos de abusos de álcool e violência, incapaz de sentir culpa pela morte que provocou, torna-se evidente na sua trajetória disfuncional o peso do fantasma do pai cruel (supereu cruel) que este jovem carrega na sua vida mental. Um pai que parece ter sido sentido como esmagador no desenvolvimento da sua identidade, em relação ao qual se sente impotente e ameaçado. Fica claro, ao longo do filme, como a sua violência comportamental espelha a violência que o ataca internamente e da qual se procura libertar.
Em Lúcio, pai da menina que se perde com o vizinho idoso, assistimos ao profundo impacto que este acontecimento desperta nele, ficando obcecado pela ideia de que algo sexual poderá ter ocorrido entre o vizinho e a filha menor. Mais uma vez Moretti põe-nos em contato com o peso do fantasma (neste caso, o fantasma de sedução entre um adulto e uma criança) que se inscreve na narrativa psíquica deste homem pelo seu caráter traumático que transborda para o real, na forma catastrófica como ele vai lidar com esta situação.
Este filme sublime, em que Nanni Moretti, de forma magistral, expõe a complexa teia de relações entre o interno e o externo na dança da vida, é uma ode ao que cada humano (e a própria sociedade) transporta no seu território mais íntimo, que podendo ser fonte de (des)amparo é, inequivocamente, sempre fonte de luta na difícil arte de (sobre)viver. Filme a não perder.
Imagem: Cartaz do filme
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