São antigas as referências que conservo sobre a Casa da Praia. Tão antigas que acabaram por tornar-se naquelas referências que ficam guardadas no espaço que todos nós temos, espécie de despensa interior que preserva os ingredientes preciosos na confecção das receitas usadas na criação do nosso trabalho clínico.
A Casa da Praia é isso mesmo: uma Casa. Grande, e ao mesmo tempo contida no seu lugar próprio, há muito estabelecido na Travessa da Praia. O seu nascimento foi em 1975, mas todos sabemos que, tal como o bebé imaginado, nasceu muito antes no ventre-mente do seu pai-fundador, o Dr. João dos Santos. Uma vez disse que: “Casa parece sugerir casamento, família, lar e mãe. Para mim a casa (…) é mais influenciada pela mãe do que pelo pai” (1). Eu acrescentaria que, para se constituir e desenvolver, qualquer Casa Interna precisa de ambas as funções, paterna e materna, numa co-criação conjunta e complementar, tal como João dos Santos mostrou ao tornar-se pai ao mesmo tempo que revelava ser uma boa mãe, nos seus gestos de acolhimento e compreensão, próprios de uma boa função materna.
Só recentemente cruzei pela primeira vez a entrada daquela Casa. Tanto por fora como por dentro, pormenores subsistem à passagem do tempo, conferindo ao espaço uma aura intemporal. Tal preservação esmerada revela um respeito comovente pela herança deixada pelos seus fundadores, conservados vivos em objectos, detalhes e recantos. Se "Em cada berçário há fantasmas" (2), também esta Casa parece habitada por bons fantasmas, presença viva no modo único e particular como cada criança é recebida e acompanhada. É aos que agora habitam a Casa, compondo uma larga e diversificada família, que pertence o trabalho de conservação da História, mantendo as raízes e promovendo o futuro.
“A Casa é o espaço das nossas memórias, das nossas lembranças, mas também dos nossos conflitos internos. A Casa que vem mais à memória nos nossos sonhos é a nossa casa de infância.” (3) São todos aqueles que compõem a equipa multidisciplinar que, nas suas especificidades, zelam para que cada criança ali possa permanecer o tempo que leva a reparar os tectos e chãos das Casas internas que, com dificuldade, habitam. Acreditam que somente assim novos e mais robustos alicerces serão erguidos em cada uma das Casas de Infância.
Ser recebida na Casa da Praia, e por pequenos momentos dela fazer parte, tem sido um privilégio difícil de pôr em palavras. Ainda não sei bem se sou eu que dou porque, na verdade, verifico que tenho recebido muito. E, ao receber, apercebo-me que passei a participar do movimento de repetição geracional, numa passagem de testemunho da palavra viva de João dos Santos.
João dos Santos foi também um dos pais da psicanálise em Portugal, fertilizando nesse campo as mentes dos muitos que consigo se cruzaram. Foi um dos fundadores da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, concebendo uma outra Casa e contribuindo para a fundação de uma outra grande família. Constitui-se assim como uma espécie de avô e tornou-se, como todos os avôs, eterno nas memórias de todos aqueles que com ele privaram e trabalharam, que, por seu turno, se tornaram também eles agentes de transmissão às gerações seguintes, das quais eu faço parte.
Imagem: Casa da Praia - Centro Doutor João dos Santos
(1) - Santos, J. (2007) - A Casa da Praia - O Psicanalista na Escola, Livros Horizonte
(2) - Fraiberg S., Adelson E., et Shapiro V., (1975) - Ghosts in the nursery, A Psychoanalytic Approach to the Problems of Impaired Infant-Mother Relationships, Journal of the American Academy of Child Psychiatry, Vol 14, Iss. 3
(3) - Santos, V. (2018) - A Casa e o mundo, Lata Edições
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