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Ana Belchior Melícias

Morreste-nos ou viveste-nos?!

Quino, faz muito tempo que este teu cartoon me acompanha, e sintetiza muito do que é para mim a psicanálise. Utilizo-o habitualmente na sala de análise, quando o desejo de sermos outros, de nos livrarmos de nós, de ir para a Conchichina, de mudar tudo, de começar do zero, se instala. Este hibridismo genialmente paradoxal a que nos habituaste, de sabedoria e decepção, de humor e surpresa, de poesia e crítica, faz-nos rir quando a dor se torna por vezes sufocante. E tu bem sabes que o riso é muitas vezes a nossa terapia, a nossa possibilidade transformativa.

Por tudo isso e antes que termine o ano de “mudança catastrófica” global, que te viu partir, preciso revelar-te a minha gratidão e a boa companhia que significou o teu humor e o universo da Mafalda, seus pais e irmão mais novo Guille, e os amiguinhos Felipe, Manolito, Susanita e Miguelito.

Da tua vida (1932-2020) sabemos que nasceste na Argentina e muito cedo descobriste o teu talento. Mas cedo também perdeste a mãe e o pai. Permaneceste ligado ao mundo onde tudo é possível, o mundo infantil imaginário, e foste crescendo tímido e solitário, entre lutos e guerras. Abriste mão de Belas Artes para te tornares cartunista. E, em 1964 nasceu a tua emblemática Mafalda – a contestatária. Fã dos Beatles, detestava a sopa, inconformada com as injustiças sociais e “politicamente incorreta” com as suas sábias e pertinentes perguntas sobre a ordem do mundo, sobre as desigualdades, a luta de classes, a prepotência dos mais fortes, a burocracia, o capitalismo, o comunismo, a pobreza, etc. Disseste algures que o mundo atual seria para a Mafalda “um desastre e uma vergonha”. Umberto Eco, teu fã, via-a como uma “heroína zangada, que não aceita o mundo como ele é (…) e reivindica o seu direito de continuar sendo uma menina que não se quer responsabilizar por um universo adulterado pelos pais.”

Puxando a brasa à minha sardinha… Com o pensamento inquieto e desassossegado, investigadora, atenta e perscrutadora do que não é evidente, uma alma ligada ao sonho e à infância, empática com o sofrimento, para mim, a tua Mafalda é uma espécie de psicanalista: pensa e nos instiga a pensar. Como quando pergunta à professora: para onde vão os nossos silêncios quando deixamos de dizer o que sentimos? Ou, frente a um arbusto, um passarinho diz-lhe: o mau de nascer de um ovo é que todo careca que passa desperta o meu Édipo. Ou ainda, olhando surpreendida para os troncos retorcidos de uma árvore: nunca te ocorreu consultar um psicanalista?

Mas a frase que escolhi para te homenagear, dita ao que parece pelo Felipe, mas imortalizada pela Mafalda, traduz a própria essência do processo analítico: logo a mim me cabe ser quem sou, suportando a dor subjacente, sem deixar de transformar e usar criativamente o potencial que trago em mim. A nossa história só por nós poderá ser vivida. Mas isso deixa-nos a todos surpresos e decepcionados, pois obriga-nos a sair dos vãos narcisismos, dos ilusórios ideais e da grandiosa onipotência, para sermos quem podemos ser.

Nascemos limitados sim, mas há um “ilimitado” de liberdade e prazer a realizar pela subjetividade do arranjo dinâmico, criativo e caleidoscópico que vamos dando aos limites que nos constituem. Temos de validar a nossa biografia e biografar a nossa verdade.

Quino, tu disseste pela boca da Mafalda: “Que importa a idade? O que realmente importa é perceber que, no fim das contas, a melhor idade da vida é estar vivo”. Dentro de muitos, ficarás e-ternamente vivo!

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