“Somos nuestra memoria,
somos ese quimérico museo de formas
inconstantes,
ese montón de espejos rotos.”
Jorge Luis Borges. Poesia Completa. p. 445
Para muitos terá passado em branco, mas no final do ano passado, foi decretado o fecho definitivo da mais antiga ONG russa, a Associação Memorial. Esta associação nasceu da iniciativa de um grupo de cidadãos, no fim dos anos 80, para criar um monumento e um arquivo das vítimas da repressão de Stalin, porém, rapidamente os seus objetivos e ações se tornaram mais amplos, constituindo-se como a maior organização de defesa de direitos humanos na Rússia.
Os ataques contra a Memorial coincidem com a ascensão e consolidação do atual regime em Moscovo. Já em 2009, a ativista Natalia Estemirova, que investigava as ações dos paramilitares do Kremlin na Tchetchénia, foi sequestrada e assassinada em Grozni. Este parece ser o destino de qualquer cidadão que se oponha ao novo regime totalitário russo.
Yuri Dmitriev, Serguéi Koltyrin, Navalni, Oleh Sentsov, Vladímir Kará-Murzá, Oleg Orlov, Natalia Estemirova, Nicolái Rybakov, Ilya Yashin, Anna Politokvskaya, Mijail Jodorkovski, Boris Nemtsov, Paul Klébnikov e muitos mais, são os nomes daqueles que foram assassinados, que cumprem penas de prisão ou se encontram a aguardar julgamentos viciados, pois na Rússia não vigora o Estado de direito. A realidade e a memória estão proibidas.
A Rússia encontra-se novamente numa encruzilhada histórica, sob um regime totalitário, que não só pretende liquidar qualquer aspiração democrática, mas também impor uma visão monolítica da história russa. A idealização da imagem de Stalin implica a negação da existência das suas vítimas, que foram milhões. Uma boa parte da população russa, aparentemente, aderiu a esta narrativa. Através da história sabemos que a guerra aproxima o líder da população, porque entre outros fatores, a técnica do inimigo externo age como um aglutinador do inconsciente coletivo.
Este branqueamento histórico não significa que Putin seja comunista, pelo contrário, o seu regime é ultranacionalista, ultraconservador e tem apoiado muitos partidos populistas de extrema-direita no mundo democrático. A sua finalidade é desestabilizar as democracias, pelo que os regimes de Moscovo e Pequim denominam “a agenda humanitária” do ocidente.
Qual é a importância da Associação Memorial e qual é o objetivo do seu encerramento definitivo? A aniquilação da memória histórica e os direitos humanos. Ao contrário das nações que conquistaram a sua soberania com a queda do império soviético, a Rússia sofre de sérios problemas em confrontar-se com a sua memória histórica. Este problema não é exclusivo da Rússia com toda a certeza, mas no seu caso específico, elaborar e tomar consciência de que vitimas e vitimários foram e são maioritariamente russos acrescenta um peso suplementar. Os gulags são da ordem do ominoso.
A queda do império soviético deveu-se a muitos fatores, entre eles, uma crise económica profunda e a sua fragilidade social agudizou-se na viragem para a economia de mercado, sistema económico que o regime russo não pretende abandonar. Entre as ruínas do império soviético, a sociedade russa caiu numa crise identitária. Como diria Volkan (2019), “e agora quem somos nós?”. Ao contrário de que sucede nos outros países que pertenceram à URSS, para os russos a identidade russa e a soviética estão totalmente fusionadas. Os impérios constroem-se com o sentimento de uma suposta superioridade sobre os povos conquistados. Este narcisismo maníaco tem inúmeros exemplos históricos e atuais, o seu legado é fatídico.
Putin desenterra Stalin, pois no seu regime de terror, a Rússia industrializou-se (graças em boa parte ao trabalho escravo da população dos gulags), triunfou sobre os nazis, ampliando o seu eixo de poder e transformou a Rússia numa potência mundial. São estes aspetos que o regime russo pretende exaltar. Ao mesmo tempo, proíbe qualquer menção ao infame tratado Molotov-Ribbentrop, no qual Stalin e Hitler acordaram invadir e dividir a Polónia. Quando Putin afirma que a queda do império soviético foi uma catástrofe para a Rússia, além de apontar para uma experiência traumática pessoal, também pretende coroar-se como o restituidor da “grandeza imperial russa”. É o líder messiânico que pretende o regresso ao passado glorioso.
Nesta retórica, os gulags foram o preço a pagar pela industrialização da Rússia e da URSS. Sendo assim, apaga-se qualquer confronto com a memória histórica e as suas vítimas. A identidade nacional fica mutilada, pronta para repetir o que não foi integrado no seu passado imperial e na sua experiência histórica. Os campos de concentração soviéticos foram diferentes dos nazis, o seu objetivo não era o extermínio em si mesmo, era económico e, obviamente, repressivo. O frio, a fome, a falta de roupa e a barbárie fizeram o extermínio. A omnisciência do frio não é uma imagem nem uma metáfora, é a morte no gelo.
Ao contrário da Alemanha, a Rússia não teve tempo de aceitar e elaborar os seus campos de concentração. A Associação Memorial compilou um arquivo digital que levou décadas a ser criado, um trabalho titânico que foi confiscado pela polícia do regime em 2008. Uma das acusações era a de serem “agentes estrangeiros” e esconderem informação. Em dezembro do ano passado, a procuradoria questionou qual é o objetivo de ensinar às crianças essas lições de história e sentir vergonha quando são um povo vencedor. A liquidação da Memorial não é mais que uma ofensiva do regime para impor uma versão única da história russa. A memória e o pensamento foram proibidos e o seu resultado está perante os nossos olhos, o que quisemos ignorar jorra e grita.
Uma longa e aterradora noite caiu sob a Rússia, temo que por muito tempo.
Imagem: Anselm Kiefer - Heroic Symbol I (1969–70)- Würth Collection ©, Künzelsau
Volkan, V. (2019) Large-group Identity, Who Are We Now? Leader-follower Relationships and Societal-Political Divisions. The American Journal of Psychoanalysis, 79:139-155
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