Freud atingiu um tal estatuto que se arrisca a ser como um daqueles gigantes da literatura (Homero, Virgílio, Camões, Shakespeare,etc), considerados incontornáveis mas que poucos leem diretamente, exceto alguns estudiosos.
A maioria foi conhecendo Freud indiretamente, pela mão de académicos, sistematizadores, comentadores, críticos, cada qual apresentando uma versão filtrada de acordo com as suas grelhas de análise.
Sendo Freud o pai da psicanálise, a sua obra tende a suscitar uma leitura impregnada de fortes sentimentos transferenciais. Ora um sentimento de devoção quase religioso, como se a sua palavra fosse a última palavra, tornando difícil pensar fora dos sulcos que ele abriu. Ora um desejo de oposição, de provar que está errado, obsoleto e, desse modo, afirmar uma capacidade de ultrapassá-lo.
Este último movimento poderá desembocar num afã revisionista, no desejo de reconstruir a psicanálise a partir de novos fundamentos, de abandonar tudo o que cheire a “velha psicanálise”.
A ambivalência em torno do criador da psicanálise, manifesta-se ainda na propensão para guardar uma opinião negativa em relação a Freud, ao mesmo tempo que se engrandecem os méritos daqueles que se desenvolveram ao seu lado – “Freud nem por isso, mas Jung, Adler, Reich, Ferenczi… esses são muito interessantes.” Ou então, apresentando-o como fogo fátuo em comparação com outros que lhe sucederam: Klein, Bion, Lacan, etc, contornando que todos eles se inspiraram e reconheceram uma dívida de gratidão para com o pensamento de Freud.
Acresce que se observa, em muitos meios académicos e institucionais, como ritual para ascender na cadeia social, uma espécie de jogo de salão que consiste em criticar e ridicularizar Freud, fazendo parecer mais “in” e respeitável quem participa nesse jogo. De tal modo, que Irvin Yalom, no seu “The gift of therapy” (2001) sentiu necessidade de escrever um capítulo que intitulou: “Freud Was Not Always Wrong”!
Por tudo isto, Freud arrisca-se a ser dos autores menos lidos, ou mais mal lidos, da psicanálise, apesar da impressão contrária, de que já se conhecem sobejamente as suas ideias (sobretudo por via de um conhecimento em segunda mão, feito de resumos e análises).
Não é fácil ultrapassar a crosta de preconceitos e de presunção acumulada à volta de Freud e permitir-se ler de forma aberta e curiosa os textos que escreveu.
Mas quando acontece, corre-se o risco do espanto, de descobrir um pensamento que é complexo, tem nuances, e que pode afinal ser fresco e até inesperadamente atual. Claro, também se tropeça com aspectos anacrónicos e com motivos para discordar, sinal de que estamos perante uma obra humana e não divina, logo imperfeita e inacabada.
Em qualquer dos casos, descobre-se um grande escritor, cuja genialidade se manifesta na forma como escolhe palavras e imagens, como conversa com o leitor e o convida a percorrer com ele os vários passos do seu pensamento. Percebe-se em Freud um esforço para ser didático, claro e compreensível, ao contrário de outros que preferem um estilo oracular e arrevesado.
No entanto, uma dificuldade com a obra de Freud é a sua extensão. Escreveu muito. Imaginar ler toda a sua obra causa vertigens, parece uma viagem impossível, além do mais injustificada, quando há tantos outros autores para ler, modernos e contemporâneos.
É por isso que a seleção de textos de Freud organizada por Adam Phillips (The Penguin Freud Reader, 2006) merece a nossa atenção. Ao invés de uma apresentação segundo uma lógica linear de princípio, meio e fim, reúne uma seleção interessante de textos apresentados por ordem inversa, do fim para o início.
Quem se recorda de ter visto sequências de imagens de filmes apresentados de frente para trás, poderá antecipar que uma leitura de Freud nestes moldes pode trazer elementos de surpresa e descoberta. Liberta-nos das amarras de uma fantasia de rigor e linearidade, para uma leitura segundo uma lógica de sonho, em que a direcção do tempo em termos de passado, presente e futuro, ou princípio, meio e fim, é subvertida.
Neste baralhar e dar de novo há possibilidades de redescobrir um Freud imprevisível, que pode sobressaltar e encantar pelo seu humor fino. Ao mesmo tempo, facilita o darmo-nos conta daqueles temas que o atraíram e que foi retrabalhando ao longo da sua vida, tão presentes no fim como no princípio.
Por vezes perguntam-me o que ler de Freud. Na próxima vez, estarei mais preparado para aconselhar, aos outros e a mim próprio.
Imagem: Kyle Glenn, publicada em Unsplash.
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