Alfred Hitchcock no seu filme de 1954, “Janela Indiscreta” (Rear Window, cuja tradução literal é “Janela das traseiras”, apelando ao que se desenrola por detrás), narra o crescente desenvolvimento de sentimentos paranóides vividos pelo protagonista. Impossibilitado de se mover e confinado ao espaço de sua casa, o fotógrafo Jeff (James Stewart), sente-se gradualmente invadido por um sentimento claustrofóbico paralisante.
Preso numa cadeira de rodas, vive um conflito interno evitando comprometer-se numa relação amorosa com Lisa (Grace Kelly), (primeiros vestígios claustrofóbicos). Passa a interessar-se pelo ambiente exterior, observando e posteriormente vigiando, através da janela da sua sala, as casas dos vizinhos, as acções desenroladas nos seus interiores e as múltiplas personagens que, através do seu olhar, passam a constituir-se como personagens de um filme construído por si. Transformando a janela numa tela, Jeff projecta os seus fantasmas internos nos diversos personagens que vão surgindo.
Certa noite, a escuta de um grito (equivalente ao grito mudo da sua angústia), alerta-o para as estranhas movimentações ocorridas no exterior, despertando em si sentimentos de desconfiança. As cenas que observa, contaminadas pela sua fantasia, conduzem-no à crença de ter testemunhado um crime. Outros acontecimentos, como a morte de um cão, reforçam o seu sentimento, levando-o a assumir o papel de vigia furtivo. Munido de uma lente fotográfica, perscruta a vida dos seus vizinhos, acabando por tornar-se ele próprio num agente persecutório. O recurso à lente, cuja função é a de aumentar o grau de ampliação, anulando o distanciamento, vem potenciar a indiferenciação entre o mundo interno e o mundo externo, diluindo a fronteira entre estes dois ambientes. O sentimento paranóide é então projectado no exterior, afastando o personagem do contacto com as verdadeiras ameaças que habitam o seu mundo interno.
As circunstâncias actuais em que mergulhámos involuntariamente trouxeram-nos, de forma crua e abrupta, uma realidade em que, submetidos a um confinamento obrigatório, nos vimos, não só privados da nossa liberdade pessoal (sentida como claustrofóbica), como resignados ao convívio com uma ameaça externa, difusa e potencialmente mortal. Tais circunstâncias, desreguladoras do curso normal da vida de cada um e da sociedade enquanto grupo, levaram a que se observassem movimentos, também eles violentos. Perante a dificuldade em transformar, elaborando angústias primitivas emergentes; perante a inviabilidade de representar, atribuindo um significado e encontrando um lugar onde o impensável pudesse assumir-se como passível de ser digerido pelo processo do pensamento; perante a impossibilidade de integrar o medo de ser destruído e de perda da integração do eu, surgiu a paralisia e com ela os movimentos projectivos, evacuados no exterior. Estes movimentos ganharam grandes proporções sendo vividos, na sua dimensão mais violenta, sob a forma de fantasias paranóides, projectadas através de sentimentos de desconfiança dirigidos ao “outro”: governo, autoridades de saúde, mas também vizinhos, pares ou familiares, sob variados modos. A ameaça assumiu a forma viral da desconfiança.
Sob a égide da tolerância e recurso à capacidade negativa (como Bion propôs), será necessário adoptar um certo distanciamento, ancorado na esperança e confiança na nossa capacidade edificante e agregadora de pensar os nossos próprios pensamentos, permitindo o acesso à capacidade de conter, elaborar e integrar a experiência, potencial evento traumático. Esse distanciamento só poderá ser vivido através da capacidade de abdicar das “lentes”, que potenciam a proximidade excessiva, dificultando aceder ao verdadeiro olhar. Será preciso tempo, compasso de espera difícil de suportar, mas necessário. Possivelmente aquele tempo que, também nos processos psicanalíticos, é necessariamente vivido de modo a distinguir e separar o interno do externo, tornando o mundo interno progressivamente mais capaz de enfrentar e conviver com os impactos destrutivos e virais inerentes à vida.
Imagem: Janela Indiscreta, (Alfred Hitchcock, 1954)
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