Freud dizia que a pulsão de morte tende a ser silenciosa, excepto quando se vira contra o outro, como desejo destrutivo. No próprio, só se deixa ver quando a libido se esgota, quando o que interessa e liga o indivíduo à vida se desfaz. Então, em vez do desejo de construir, de amar, de sustentar e fazer crescer, surge o desejo de largar, deixar ir, desagregar, em última análise, morrer.
Poder-se-ia dizer, também, que a inveja é silenciosa, esquiva à investigação, pois admitir inveja em si é reconhecer inferioridade face a outro. A inveja é um estado mental doloroso que acompanha a consciência de que alguém é possuidor de bens e qualidades que não se possui. Neste estado de espírito, olhar para o outro, comparando-se, pode abrir uma ferida, fazer a pessoa sentir-se em baixo, mais pobre, mais infeliz, menos capaz e inferior. Tão doloroso é esse estado que é muito mais fácil ver a inveja dos outros do que a do próprio.
Há quem diga que a inveja é o pior dos sentimentos, porque não é apenas um tormento para o próprio mas também para o outro, pois contém uma intencionalidade que só se contenta com a destruição da felicidade do outro. Se este exibe algo que o próprio não tem, torna-se insuportável vê-lo. Consequentemente, surge o desejo de atacar, conspurcar, estragar as suas qualidades, tornar menos bom, menos bonito, menos feliz.
Há alguns anos ouvi a seguinte história: em certa tribo de África, alguém resolveu construir uma cabana que se destacava de todas as outras em dimensão, beleza e ostentação. Então, um outro elemento da tribo pegou-lhe fogo, sentindo-se legitimado para tal porque o avistar dessa cabana lhe feria os olhos!
Será de nos interrogarmos em que medida a nossa cultura também se organiza como defesa contra a inveja. Por exemplo, o puritanismo, que se pode instalar insidiosamente sob as formas religiosa, política, económica, eco-sanitária, e outras, produzindo profetas da desgraça e defensores de virtudes, que têm em comum uma mesma atitude censória e reprovadora da felicidade dos outros – só repousa quando lhes apaga o sorriso! Como se devessem ser punidos pelos sinais de maior felicidade e descer à condição de simples mortais amedrontados, cronicamente infelizes.
Na peça “Kiki Van Beethoven” de Eric-Emmanuel Schmitt ouvimos dizer a um personagem que, num jardim, ouve tocar maravilhosamente Beethoven: “ É insuportável ouvir tanta beleza!” Talvez seja por isso, que os nossos domingos televisivos sejam repletos de música pimba. Mas não deixa de ser um pensamento inesperado, o de que o contacto com a beleza, a felicidade, a bondade pode ser insuportável! E que daí resulte a necessidade de denegrir, ridicularizar, desvalorizar o que é bom ou tem qualidade.
Em face da dor de reconhecer que há coisas que não se sabe ou que que não se possui, é tentador denegri-las, dizer como a raposa da fábula que “as uvas são verdes”.
Mas talvez pior do que sentir inveja é a sua negação, o tentar dissociar-se de tais sentimentos atribuindo-os apenas aos outros, nunca a si próprio.
É a falsa solução do vaidoso. Não admite ter inveja mas procura despertá-la nos outros, inchando e fazendo-se grande para que o outro se sinta pequeno, inferior, insignificante. O snobismo social ou intelectual são apenas alguns exemplos. A exibição de ares de superioridade visa descarregar nos outros as tensões narcísicas e os sentimentos de inferioridade que ameaçam o próprio.
Só que a vaidade tem um grande apetite. Necessita ser constantemente alimentada. Senão, há o risco de catástrofe, de falência da auto-estima.
Por isso o vaidoso gosta de se rodear de admiradores, fãs, alunos, discípulos ou seguidores, aceites enquanto extensões do próprio que alimentam a sua fome de elogio. Cumprindo essa função são desejados e acarinhados. Se fogem do papel são ingratos. Sobretudo é imperioso que nunca aspirem à reciprocidade no respeito, imediatamente percebido como desejo de serem tão bons ou ter tanto como ele. Que aceitem o seu lugar de irrelevância! Só mantendo uma posição de exuberante superioridade, pode o vaidoso esconder as suas falhas e limitações. Mas manter uma tal posição requer controlo e poder irrestrito sobre o outro, o direito absoluto a ter a sua atenção e devoção, ser o centro do universo. O que pode ser tão absorvente que deixa o outro esgotado e seco, sem mais nada para dar, larvando uma raiva que um dia explode.
Inveja e vaidade são duas faces da mesma moeda. Ambas procuram lidar com sentimentos de inferioridade, mas usam estratégias opostas: a primeira atacando as qualidades do invejado, a segunda fazendo-se maior para que o outro pareça pequeno.
Melanie Klein, apontava para a gratidão como antídoto para estes maus sentimentos. A gratidão é uma emoção complexa, que começa por uma experiência de gratificação (a experiência do bom); passa pelo reconhecimento de que por trás da dádiva há um dador; evolui para uma apreciação da relação; e desemboca finalmente no desejo de retribuir a dádiva que se recebeu.
Quando se acede à gratidão entra-se numa zona de confiança, optimismo, boa vontade e generosidade. Mas antes é necessário atravessar uma zona de turbulência emocional, que Klein chamou de posição depressiva, onde se reconhece que bons e maus sentimentos coexistem na mesma pessoa. Isto implica capacidade de tolerar a contradição e o conflito, que dentro do próprio habitam amor e ódio, e que se pode fazer mal aqueles que se ama, com a culpa e tristeza que daí decorrem. É também reconhecer que aqueles que idealizamos têm os seus pés de barro, qualidades e defeitos, mas que ainda assim, se pode dar e receber coisas benignas, que a relação gera bons frutos, pelos quais se sente grato.
Escrevendo no rescaldo das festas recentes é curioso observar que não temos o equivalente, em dimensão, da festa do “Thanksgiving”, talvez a mais popular dos EUA. Trata-se de um feriado com origem nos ritos de celebração das colheitas, e por isso, com um sentido de educação para a gratidão. Pergunto-me se não fará falta.
Imagem: Adam Wilson
Sugestão de leitura: Berke, Joseph H. Why I Hate You and You Hate me: The Interplay of Envy, Greed, Jealousy and Narcisism in Everyday Life; Karnac, 2012
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