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INFÂNCIA & CINEMA

Em 1895 Auguste e Louis Lumière fazem a primeira sessão pública do cinematógrafo e Freud lança o “Projeto para uma Psicologia Científica” contendo já ali, seminalmente, as suas descobertas. Contemporâneos enquanto descoberta e irmanados pela abordagem, Cinema e Psicanálise influenciaram-se mantendo uma comunicação estreita – expressa ou velada. O diálogo potencial e complementar, oscilando entre afinidades e divergências, alarga a reflexão sobre as vicissitudes e a diversidade da condição humana.

Na história do cinema a psicanálise aparece muitas vezes confundida com a psiquiatria. Também os psicanalistas (Freud: the secret passion, Huston, 1962) e a sua atividade, confundida com a sua vida pessoal, tem sido alvo de humor senão de descrédito. Em 1926, Wilhelm Pabst projeta o primeiro filme sobre a psicanálise – Os Mistérios da Alma – com assessoria de Sachs no qual Freud se recusa a colaborar respondendo a Abraham (09.06.1925): “Não acredito que uma representação plástica satisfatória de nossas abstrações seja de todo possível.” Mantendo distância e desconfiança em relação ao cinema, a par com uma aversão a biógrafos e a habitual reserva da sua vida privada, aceita uma única vez ser filmado por um paciente americano, Philip R. Lehman, para um documentário (Sigmund Freud: his family and colleagues 1928-1947) lançado em 1985.

A arte, como qualquer expressão cultural, transporta a linguagem do inconsciente. O cinema pode trazer entretenimento, prazer, medo, excitação, aprendizagem, contacto com outras perspectivas. Os filmes podem ser facilitadores da livre-associação numa atmosfera onírica, expressar o mundo interno, a personalidade dos personagens, os seus aspectos conflituais, a sua historicidade, a plasticidade das fronteiras entre o normal e o patológico, etc. Permitem uma teia de identificações, a par com as teorias atuais da psicanálise da terceiridade, do campo analítico e da intersubjetividade, gerando espaços potenciais e transformativos.

No cinema as crianças cedo aparecem, simbolizando a dependência ou a ingenuidade humanas e, salvo algumas excepções, por um século (1850-1950) cumprem um padrão: a criança europeia, branca e burguesa. Pela década de 1950, a concepção da infância parece integrar já alguns contributos da psicanálise, a que acrescem as transformações sociais, económicas e culturais, modificando a própria infância e a sua representação.

Elas começam a surgir como sujeitos com a sua própria história, narrativa e experiência únicas. É do sonho e da infância – pilares da teoria psicanalítica – que nascem todas as formas de cultura e o próprio processo de humanização. A história subjetiva do adulto, engloba todas as idades vividas, integrando o sensorial, o corporal e a representação simbólica. E o cinema apresenta uma narrativa possível, abrindo acesso a esse lugar que nos habita em permanência e que se constitui como a nossa origem.

“… o que os realizadores e outros artistas fazem (…) tem uma semelhança com as brincadeiras das próprias crianças. De fato, o primeiro origina-se e é um desenvolvimento orgânico do último. Noutras palavras, há uma continuidade entre o brincar imaginativo da criança e o trabalho criativo dos artistas e realizadores de cinema.” (Sabbadini, 2014, p. 37)

O cinema apresenta-se portanto como valioso instrumento de expansão do conhecimento, promovendo a compreensão psicodinâmica do funcionamento intra e intersubjetivo. Explorando elos do desenvolvimento infantil e as problemáticas inerentes, acolhemos através da experiência estética, diferentes narrativas e rêveries que permitem perspectivas renovadas sobre a infância.

Nasceu assim o Grupo de Reflexão Infância & Cinema, no âmbito do Outreach Committee da IPA. Ao longo de nove filmes e da sua reflexão conjunta, desejamos manter a salutar tensão criativa entre as duas abordagens e que o campo assim aberto nos leve a criar e re-criar narrativas sobre a infância e sobre a tela.

Imagem: Poster de Henri Brispot feito para a primeira exibição dos irmãos Lumière no dia 28 de Dezembro de 1895 no GrandCafe em Paris, considerado o marco fundador da sétima arte.

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