Ao descer a arriba que separa a praia do Meco do frondoso pinhal, avistámos um vulto cinzento e arredondado que parecia ter sido abandonado à beira-mar. Inerte e pesado, apenas o bater das ondas o fazia mover-se, de forma desarmoniosa, oferecendo resistência à doce fluidez daquela manhã de outono.
Lembrava que a morte está inscrita no curso da vida e que é por causa da acidez dessa marca de água que o tempo ganha sentido e que a nossa existência se torna bela, tornando tudo relativo, tal como este corpo, espécie de represa que se oferece e se ganha ao mar.
Nesse fio de tempo suspenso, frágil compasso de espera no qual a perceção nos confundia, pôde haver ainda lugar para a dúvida sobre a natureza do objeto inanimado, pois que à matéria sem nome próprio, sobra-lhe o limbo das coisas sem memória e sem afeto.
Quebrou-se então o silêncio a que o espanto obriga pela voz do Rodrigo que, nos seus pouco mais de dois anos, nos interrogou:
– O que é aquilo?
– É um golfinho – ouvi-me dizer.
– Morreu?
E nesta pergunta que o meu filho mais novo me coloca, à dor da palavra que não pode existir sem um contexto, ele acrescenta:
– Porquê? Não tinha mãe?
Primeiro de Novembro. O calendário convida-nos a lembrar e a honrar os nossos mortos.
Mas não será toda a vida senão uma sucessão de perdas, desafio permanente que as inevitáveis transformações da passagem do tempo em nós provocam, deixando marcas de um futuro que interroga o passado: Quem são os mortos que em nós vivem, quais os elos que nos ligam e como resgatá-los ao esquecimento?
Cada nova etapa da vida convoca à rutura com a precedente e à aceitação da incerteza da seguinte. O Luto, problemática do ciclo de vida, tem na abordagem psicanalítica uma abrangência que convida à compreensão da qualidade dos vínculos, nomeadamente com os imagos parentais. Os objetos perdidos e as suas relações passam a integrar partes do self, levando à superação da dor da perda através da sua elaboração. Assim, o choque, a tristeza, a raiva e a negação, vão dando lugar a um sentimento de perdão e de gratidão que nos acrescenta e enriquece, tornando-nos mãe (e pai) de nós próprios.
Estes vínculos, trocas imperfeitas entre gente que se estranha mas que se quer, votadas ao erro e à incompreensão, permitem-nos justamente existir, resistir e persistir.
Se não existe bebé sem mãe, não há conteúdo sem continente. Cuidar, educar, proteger, são atos de amor, que desafiam o tempo e, neste, vencem a morte.
Nesta tela complexa, feita da diferença, da falha e do conflito, imprime-se a matéria prima das identificações de cuja qualidade relacional decorrerá a capacidade de integrar a perda e a suportabilidade de superar o(s) luto(s).
Tenho para mim que o encontro, fundado por natureza no desencontro, cria as condições para que possamos vir a ser quem somos, equilíbrio conflituoso, instável que é preciso constantemente alimentar. Hoje em dia, mulher madura, mãe, psicanalista, celebro e sinto-me grata pelos meus encontros felizes e persisto em transformar os meus desencontros em lógicas de sentido.
Imperfeita, vigorosa e, porém informe, força que se destaca contra o esquecimento, a vida vence a morte e o amor ganha ao ódio porque em nós perduram os laços que criámos com outros que nos vão, cada vez mais, transformando… em nós próprios.
Aos corpos esquecidos e abandonados na praia, há que lembrar-lhes qual é a dádiva materna e paterna, função superior da natureza e da humanidade: só morre quem não ama; só esquece quem não pôde ser amado.
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