A Netflix estreou no dia 30 de Março uma série (8 episódios) que intitulou Freud. Com custo, consegui ver três episódios.
Escrever uma nota sobre uma série que não se viu pode parecer ousado e até desonesto e hesitei muito em partilhar o meu ponto de vista.
A série pretende descrever o ambiente finissecular de Viena e, para isso, amalgama uma série de dados, com um fundo histórico (mas, manipulados como, por exemplo, fazer conviver Shinetzler e Freud, que nunca se conheceram, embora se admirassem e partilhassem muitos pontos de vista sobre o homem) ficcionando-os para construir um thriller que possa prender os consumidores desse género de produtos.
O resultado é pobre cinematograficamente e a história tem muito pouco de interessante. E Freud, que dá o nome à serie, que lugar tem?
Segundo a apresentação, os argumentistas pretenderam dar a conhecer o trajecto profissional e pessoal de Freud antes da criação da psicanálise, quando era um ainda jovem investigador e clínico, fascinado pela hipnose e consumidor de cocaína.
Não se pode dizer que os factos biográficos apresentados sejam falsos, mas sofrem várias distorções ao serviço de uma narrativa policial barata.
Freud trabalhou com Breuer, com quem escreveu Estudos sobre a Histeria, e praticou a hipnose, depois de ter assistido às apresentações de Charcot, na Salpêtrière, em Paris. As ideias de Charcot sobre a histeria entusiasmaram o jovem Freud que se apressou a traduzir para alemão os seus trabalhos.
Também a descoberta e investigação da cocaína, que Freud consumiu durante vários anos, levou-o a escrever um pequeno texto em que dava conta dos efeitos curativos da droga, que aconselhava aos amigos e à noiva, Martha (só, muito mais tarde, se apercebeu dos riscos da droga).
Das suas investigações esperava o sucesso, que perseguia desde os seus primeiros trabalhos científicos, e lhe permitiria casar (a sua situação económica era desastrosa) e escapar ao anonimato (o desejo de ultrapassar a condição marginal do judeu no império austro-húngaro).
A situação económica, familiar, académica, psicológica de Freud é conhecida (para além da sua autobiografia, que é, sobretudo, a história do seu percurso científico, publicaram-se as milhares de cartas, que escreveu) e tem sido alvo de abordagens biográficas que oscilam entre o panegírico e a suspeição.
E o cinema, de ficção ou documental, também não deixou de se ocupar da vida e pensamento de alguém que é um dos génios descobridores da humanidade, ao lado de Copérnico e Darwin (para sinalizar as três grandes revoluções do pensamento).
Então, porque denunciar o tratamento que Freud sofre nesta produção da Netflix?
Primeiro, o título. Não me parece inocente que uma série, que pretende recriar a atmosfera reinante em Viena nos últimos anos do século XIX (a razão a coabitar com o espiritismo e a crendice), se albergue à sombra do nome de alguém que pautou a sua longa investigação sob o signo da busca da verdade (o erro e o não-saber como aguilhões sempre a despertá-lo, como salienta John Huston no filme que realizou sobre Freud).
Segundo, o retrato de Freud. Sim, há a ambição, a neurose, o consumo de cocaína, mas, sobretudo, a charlatanice. Freud, o charlatão judeu! Como não ver neste traço o ataque à psicanálise e à condição judaica?
Concluo: a série deve ser denunciada, não pela sua falta de qualidade, que partilha com a maioria das produções que nos são oferecidas nos media, mas pelo projecto ideológico que lhe está subjacente: o descrédito da figura de Freud e da Psicanálise.
As pessoas que conhecem a obra de Freud não perderão tempo a ver o Freud da Netflix mas, a maioria do público tenderá a tomar por verdadeiro este retrato desonestamente sherlockiano de Freud que transforma a prática clínica, associada ao seu nome, numa fraude.
Para servir de contraponto à mediocridade do Freud da Netflix aconselho a visão do filme produzido, em 2019, pela ARTE e dirigido por David Teboul e François Prodromidès- Sigmund Freud, um Juif sans Dieu– Freud apresentado, em tamanho natural, pela filha Anna em 1982 (revisitação documentada de episódios da vida real do pai).
Passou na semana passada na ARTE e esperemos que a RTP 2 não demore a passá-lo entre nós.
Imagem: Lucian Freud, Auto-retrato “Reflection”
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