No final de 2019, quando pela 1ª vez ouvi falar num doente com Covid, na distante Wuhan, lidei com a notícia com comparável distanciamento. Nessa mesma noite fui deitar-me com uma tranquilidade, percebo agora, pueril: é só mais um problema, que os cientistas, os que tudo sabem, vão resolver.
Em Março de 2020 são identificados os primeiros doentes com Covid em Portugal, a OMS declara a doença Covid-19 como uma pandemia e é decretado no nosso país o estado de emergência…. Enquanto isso, dentro de mim, um burburinho surdo de sentimentos, de desejos, de receios e, mais uma vez, a negação do medo: ficamos todos em casa, confinados, terei mais tempo e mais disponibilidade mental para ler, retomar hobbies. Na imaginação todos os possíveis têm a mesma realidade. Ao recorrer a mecanismos mentais primitivos, precoces, a nossa mente evita experimentar uma confusão e uma ambiguidade intoleráveis e cria um sentimento ilusório de movimento e de alívio. E o medo da morte está intimamente relacionado com a solidão, medo do abandono e da dependência (Klein)
Ao longo do tempo, foram vários os questionamentos, as dúvidas, as inseguranças que me invadiram. Sem álcool gel suficiente que aplacasse a omnipresença mortificante dos números dos doentes internados e dos mortos por Covid, há um ano e dois confinamentos atrás eu seria incapaz de reflectir e partilhar que a vivência desta pandemia não só introduziu uma vivência global de intensa angústia de morte como também foi e está a ser um catalisador de problemáticas pré-existentes. Mas estarei eu imune a tal impacto? Como é que este modo de vivência-não-vivida contagiou a minha atitude analítica? Mantive a minha integridade e o meu investimento terapêutico? Integrei as limitações externas como um aspeto da terapia? Guiei-me pelos ideais de conduta e de exercício profissional, que tantos anos levaram a ser definidos? Qual o impacto desta omnipresença da morte que ronda? Desta morte, que como Shopenhauer escreveu, é o resultado da vida. Qual o impacto dentro de mim, da limitação das pequenas/grandes liberdades que tinha como garantidas? Que áreas da minha realidade psíquica foram e estão a ser tocadas pela realidade pandémica? Nada é exclusivo de ninguém quando se trata de sentir
Também foram estas as dúvidas que deram origem aos Fogachos Pandémicos (I, II, III, IV…). Quatro colegas, com histórias e vivências diferentes, mas com sentires e preocupações que se tocam: preocupações narcísicas e financeiras com o futuro, medo da vulnerabilidade e da perda de capacidades, de ter uma doença súbita em que podemos contagiar, adoecer ou matar quem nos procura para aliviar o seu sofrimento, como lidar com a contratransferência perante pacientes que podem estar infetados.
Estamos todos, pacientes e analistas, submersos na mesma inquietação: desterrados numa discordância de tempos, sujeitos a uma certa des-humanização e consequente violenta abolição do Eu, sob a sombra da possibilidade de contagiar ou de ser contagiado
A psicanálise pessoal do analista e a autoanálise a que diariamente se sujeita, conferem-lhe uma maior autonomia do ego e uma maturidade superegóica que o habilita para melhor lidar com os seus próprios fantasmas. Além disso, o desenvolvimento das capacidade negativa e capacidade intuitiva (Bion), são indispensáveis para conter e suportar o desconhecido dentro de cada um de nós e produzir sentidos e afetos. Mas para nós ficou claro que o terapeuta também é afetado e influenciado pela situação pandémica que temos vivido e que nos sujeita a uma inquestionável tensão entre as exigências técnicas, a consideração pelo sofrimento dos pacientes e os nossos próprios medos e preocupações. Uma tensão que inevitavelmente interfere nas dinâmicas inconscientes em jogo.
Cada um de nós está diferente, passado um ano. Mais distantes fisicamente, mas com um sentimento de maior intimidade, de uma cumplicidade vivida na partilha de experiências pessoais e das experiências conscientes e inconscientes com os pacientes, criando um tempo-outro, promotor de um caminho orientado para o desemaranhar de pensamentos e sentimentos que revestem o processo projetivo. Como Christophe Dejours sugere, nenhuma estrutura psicológica está imune ao sofrimento mental.
Imagem: fotografia de Francisco Pimenta, 2021
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