Quando há poucos dias vi na televisão um documentário sobre as aterradoras desumanidades cometidas pelo Estado Islâmico no Iraque, senti que a pandemia e os seus efeitos não se comparavam com aquele terror. A pandemia tem provocado um grande sofrimento, mas quando se assiste a crimes bárbaros feitos por homens sobre os seus semelhantes, o impacto é brutal. Há uma maldade sem qualquer tipo de piedade e um horror inimaginável nas vítimas.
Mas talvez esta comparação seja uma defesa que procure suavizar os efeitos da pandemia, que também nos tem perseguido e criado cenários de grande temor. Pandemia que introduziu uma ameaça de morte e de ruína por todo o mundo, deixando-nos muitas vezes “sem palavras” para descrevermos o que sentimos. Fazer uma psicanálise pode ajudar-nos a criar essas palavras, dando forma e nome a “estados de impensabilidade” (L. Nosek), ou à possibilidade de colocar em gesto a realidade interior. Uma psicanálise deve ser uma experiência emocional partilhada e transformadora. A. Ionescu (1998), diz-nos que somos seres capazes de criar um saber da própria existência, um saber de si existindo, que não tem nada a ver com um saber intelectual,” um saber que é ser.”
Passado um ano de pandemia, talvez este saber esteja comprometido e seja mais problemático desfrutar da experiência de estar vivo. Um sufoco e uma confusão que lentamente nos vão atordoando. Podemos sucumbir a um desânimo que nos desvitaliza, sentirmo-nos robotizados e desligados ou ainda vivermos um sofrimento melancólico, sem percebermos bem o que estamos a perder. Como lidar com este ambiente caótico e resgatarmos alguma criatividade?
Freud apontava o ato criativo como elemento de saúde psíquica e processo transformador do mundo. E, os processos de transformação, exigem uma atitude de acolhimento, “acolher para transformar a realidade” (Franco, 2003).
Wittgenstein (Molder, 2011) dizia que um olhar criativo, “…é o caminho do pensamento que sobrevoa o mundo e deixa-o assim como ele é – contemplando-o de cima no seu voo.” Segundo o filósofo, trata-se de captar e contemplar o mundo a partir do exterior, fora do tempo e do espaço, o que possibilita ter um olhar sobre o mundo que transforma os objetos percebidos, os fatos e os estados de coisas em obras de arte.
O psicanalista Bion defendia que, para adotar uma atitude de acolhimento na escuta dos seus pacientes, é necessário estar nas sessões sem desejo e sem memória. Deveríamos todos nós estar no mundo “sem desejo e sem memória”?
Estas três propostas criativas – acolher, sobrevoar, sem desejo e sem memória – procuram criar uma mente disponível e não saturada. Não ficar demasiado preso à realidade interna, nem à realidade externa. Mas presentemente a adesão a estas três atitudes pode ser perturbada pela intrusão de fatos externos.
Assim, qual será o impacto deste clima “desbussolado” no ofício do psicanalista?
Estarão as funções do psicanalista – acolher, conter, transformar – afetadas? Ser-lhe-á possível acolher e sobrevoar as turbulências do seu mundo interno, mesmo com a presença excessiva de uma realidade externa ameaçadora? Será capaz de estar recetivo aos terrores profundos dos pacientes e não lutar contra a corrente? E de que modo a forma como o analista está a lidar com a pandemia influencia o seu estar com os pacientes?
Uma psicanálise exige um profundo envolvimento da pessoa do analista e não é difícil reconhecer que cada um de nós reage à pandemia com o seu estilo próprio. O facto de um analista aceitar e ter consciência do seu estado mental, e não a sua negação, pode ajudá-lo a manter a atitude analítica. Antonino Ferro (2009) também coloca esta questão quando nos diz – “Não creio que o analista possa estar constantemente no ápice da forma… e acredito, também, que seja importante que o analista não pense em ter se analisado de uma vez por todas, mas que possa continuar sempre um trabalho de autoanálise, todas as vezes que for necessário. Na vida profissional e na vida pessoal.” Agora, como sempre, é importante o psicanalista ser verdadeiro e autêntico consigo próprio, para que possa convocar uma liberdade e uma espontaneidade indispensáveis à criatividade do par terapeuta-paciente. Fazer uma autoanálise que facilite criar com o paciente uma atmosfera simbólica transformadora onde ilusão e realidade se podem combinar de muitas formas. Não ficar paralisado pelo medo da pandemia nem o negar.
No entanto, podem surgir situações difíceis e desafiantes à contratransferência do analista. Por exemplo, como escutar a narrativa de um paciente que rejeita a perigosidade da pandemia? Como acolher um paciente que confessa comportamentos de risco face ao vírus?
Atualmente, a pandemia cria certas questões específicas que desafiam a posição ética de um analista, como o uso obrigatório ou não da máscara, sessões presenciais ou remotas, interromper ou continuar a terapia. Para além do analista dizer (ou não) aos seus pacientes fatos da sua vida privada, como por exemplo, ter ficado infetado com o vírus ou ter contatado com pessoas infetadas, ter ou não tomado a vacina. Penso que será crucial ao analista exigir as condições externas com as quais se sente confortável a trabalhar para assim garantir uma plena disponibilidade emocional.
Atualmente pensávamos que a humanidade nunca seria atingida por um fenómeno destes, pois colocámos “…o homem no altar onde estava Deus” (Brás, 2016). Mas, já Fernando Pessoa (Brás, 2016) defendia que, “…a Humanidade, sendo uma mera ideia biológica, não é mais digna de adoração do que qualquer outra espécie animal”. E, em 2007 o filósofo John Gray falava da importância de abrirmos janelas não humanas para o mundo, acrescentando “O mundo não é exclusivamente algo de humano e para os humanos, bastará um cataclismo ambiental e tudo o que é civilização esfumar-se-á num instante.” Esta perspetiva pode ajudar-nos a aceitar a inevitabilidade de eventos como pandemias e a fazermos o luto de um ideal omnipotente. Não nos impedindo de sermos humanos e de irmos criando histórias sobre o nosso viver, pois “…a vida é, tenho a certeza, feita de poesia.” (Borges, 2000)
Imagem: “Paisagem Apocalíptica”. Ludwig Meidner, 1913.
Bibliografia
BORGES, Jorge Luis “Este ofício de poeta”, Teorema, Lisboa, 2000;
BRÁS, João Maurício – Fernando Pessoa e a filosofia. Um dialógo com Emil Cioran e John Gray. In: Dionísio Vila Maior e Annabela Rita (org.) – 100 Orpheu. Lisboa : Edições Esgotadas, 2016, p. 113-123.
FERRO, Antonino; Entrevista in Cadernos de Psicanálise, Brasil, 2009, Vol. 25, Número 28, Pág. 143-155
FRANCO, Sergio ; Psicopatologia e o viver criativo, Revista Latino americana Psicopatologia Fundamental, Brasil, São Paulo, VI, Nº 2, Junho 2003, pp 36-50
IONESCU, A. “A Ressureição do Self: baseado num diário de Marion Milner”, São Paulo, Atheneu, 1998;
MOLDER, Filomena; “O que é uma inclinação natural?”, in Linguagem e Valor: Entre o ‘Tractatus’ e as ‘Investigações’, Nuno Venturinha (ed.), Biblioteca Colloquia, IFL – Instituto de Filosofia da Linguagem, FCSH/UNL, Lisboa, 2011, pp. 89-115.
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