Em 2013 fui ao Cazaquistão onde participei num curso de psicoterapia psicanalítica, organizado por uma associação local. O curso era frequentado por naturais do Cazaquistão, maioritariamente mulheres. Diversas alunas pediram-me uma consulta individual. Falei em inglês e sempre na companhia de uma tradutora. A própria situação da consulta – terapeuta, paciente e tradutora – criou-me algum desconforto e hesitação. Deveria recusar estes encontros? Arrisquei, acreditando que podiam ser experiências transformadoras e úteis para os pacientes. Senti-me na obrigação de dizer algo de valioso e útil. Imaginei também que aquelas mulheres me idealizavam e me viam como um homem com capacidades para indicar soluções para os seus conflitos. Recebi a primeira paciente com curiosidade e alguma ansiedade, uma mulher de 40 anos que começou a falar olhando a tradutora. Observando esta interação e escutando a música da língua russa, procurei captar algumas emoções na expressão da paciente. Após ouvir a primeira tradução, receei cair numa conversa demasiado intelectual. Mas pouco depois, a paciente emocionou-se profundamente ao falar da sua experiência de ter sido raptada e obrigada a casar com o raptor. O seu sofrimento tocou-me de uma forma intensa. Este momento serenou-me, pois pude finalmente sentir-me ligado aquela mulher e pensar através das minhas emoções. Nalguns instantes, senti-me bastante perturbado tal era a intensidade da dor expressada. Este padrão repetiu-se nas várias conversas que tive. De início não sentia nada. Ouvia uma língua que não percebia. Depois quando as mulheres choravam, eu próprio me sentia tocado antes de ter acesso ao conteúdo verbal. A maior parte das mulheres com quem falei tinham sido raptadas na sua juventude. Algumas conseguiram fugir, mas as suas famílias obrigavam-nas a regressar para junto do raptor por uma questão de vergonha. Todas as mulheres que foram raptadas divorciaram-se dos seus maridos 10 a 15 anos depois, quando os seus filhos já eram adolescentes. Igualmente a maior parte não manifestou zanga e raiva para com os maridos raptores, com exceção de uma que disse “não suporto o seu cheiro”. A maior parte delas expressou sérias dificuldades nas relações íntimas com os homens. O fato de sabermos que só tínhamos aquele tempo – 50 minutos- tornava a experiência mais intensa, por vezes brutal e crua. Algumas mulheres falaram com uma grande avidez, não deixando tempo para a intérprete traduzir tudo o que era dito. Nessas alturas sentia-me confuso e irritado. Esta confusão de línguas fez-me pensar na minha escuta. De que forma as diferenças culturais influenciavam a minha escuta? Sem dar por isso rapidamente esqueci esta questão, pois a língua do desespero impôs-se e induziu em mim uma atitude empática. Senti-me em certos instantes assaltado por fortes sentimentos de impotência. Ser raptada é uma experiência muito violenta. Mas também creio que certos aspetos culturais e sociais podem influenciar a forma como cada mulher vive essa experiência. Julgo que é um desafio aliciante a psicanálise refletir sobre relações afetivas em contextos socioculturais tão distintos. Mas aqui ou no Cazaquistão, a impossibilidade de amar é sempre um drama humano.
Imagem: Tomás Miguez
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