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Deixem as crianças brincar!

A maturidade do homem é ter reencontrado a seriedade com que brincava quando era criança Friedrich Nietzsche

Estamos no final do ano lectivo, o início das férias escolares bate-nos à porta. Os constrangimentos virais do planeta arrastam-se. Mas esta é a altura do ano em que o brincar das crianças ganha um espaço majestoso. É tempo de nos ocuparmos profundamente do brincar. Afinal, que lugar lhe temos dado? E na Educação estarão a prestar-lhe a devida atenção? É hora de dizer: Deixem as crianças brincar!

Ernest Jones, na biografia de Freud (1989), diz-nos que foi ao observar, em 1915, o seu neto Ernst a brincar com um carrinho de linhas que Freud reformulou as suas concepções teóricas. Tal foi a importância que esta experiência teve sobre Freud. Décadas depois, Winnicott (1971,1975) ampliava uma das mais importantes conceptualizações para a psicanálise e além dela: o brincar enquanto construção da realidade psíquica, dizendo-nos que no brincar, e talvez apenas no brincar, a criança ou o adulto fruem da sua liberdade de criação, acrescentando que é no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e usar a sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o seu Eu (Self). 

Freud observou o quanto e quão bem as crianças expressam os seus pensamentos e sentimentos por meio de brincadeiras e como aí manifestam as suas primeiras grandes realizações culturais e psicológicas. Isso é verdade mesmo para um bebê cuja brincadeira consiste em nada mais do que sorrir para a mãe, como a mãe sorri para ele.

Certos sentimentos seriam ignorados, por vezes, pela própria criança, ou sentir-se-ia oprimida por eles, se não os atuasse na fantasia do brincar. A repetição no ato de brincar é sublinhada por Freud como um jogo, que consistia em, na ausência da mãe, a criança fazer desaparecer e reaparecer os objetos, de acordo com a sua vontade e desejo, sem deixar dominar-se por ela. A renúncia aqui, revela, para Freud, um ganho cultural com o auxílio de substitutos escolhidos, com os quais brinca. A criança aceita, assim, o afastamento da mãe, sem protesto.

O brincar, tal como o sonho, revela uma estrutura psicológica cheia de significado, uma estrada valiosa para o mundo interno consciente e inconsciente da criança, e é aí que o podemos compreender. Mas se na sala de análise o brincar (brinquedos, jogo e desenho) tem este lugar, sendo a principal via de trabalho na análise de crianças, na sala de aula (escola) como podemos potenciar o brincar na criança?

A psicanálise, através de um diálogo dinâmico com a escola, tem permitido uma melhor compreensão do desenvolvimento da criança e, consequentemente, da importância do brincar, promovendo na sala de aula uma interligação entre o brincar e a aprendizagem como via privilegiada de expressão dos afectos.

É ao brincar que a criança desenvolve a sua vida interior, com fantasias e sonhos acordada, ensinando-nos acerca dela própria, se lhe prestarmos  atenção e não a distrairmos da auto-descoberta. É preciso tempo para brincar com liberdade, sem o atropelamento pelo excesso de atividades orientadas dentro e fora da escola, que dificilmente deixam espaço às crianças para simplesmente serem elas mesmas. Forçadas a desenvolver os seus talentos e personalidades como aqueles que estão encarregues das várias atividades pensam ser melhor para elas.  Adam Phillips (2019) numa entrevista ao The Guardian diz-nos que o risco é que a criança venha a desenvolver um self complacente para controlar os pais. Quando crianças, aprendemos o que os nossos pais querem que sejamos. Então, temos uma tarefa, que é como negociar sendo o que eles querem que sejamos e o que pensamos que podemos querer ser, o que nem sempre é compatível, e aí haverá conflito. O risco é sempre que a criança se torne simplesmente um objeto narcísico dos pais. Na continuidade desta ideia, é importante uma atenção sobre a criança que permita escutar a criança naquilo que ela tem para nos ensinar acerca do tipo de pais / escola / professor que ela precisa. 

A pandemia introduziu um alerta na necessidade de espaço ao ar livre para a criança explorar em liberdade a sua realidade interna e externa, chamando a atenção para o recreio escolar como parte essencial do dia da criança.‍ A saúde mental e a Educação das crianças passaram a ser energicamente discutidas durante esta pandemia. Uma variedade enorme de especialistas na atualidade defende que o brincar aumenta o bem-estar e a saúde mental das crianças e que de uma forma interligada potencia a aprendizagem nos seus vários domínios, incluindo a linguagem e a alfabetização, habilidades sócio-emocionais e a matemática. Em vez do foco na alfabetização precoce, uso de cartões de memória, envolvimento com brinquedos de computador e ensino com objectivo de testes, cultivar a curiosidade e o prazer de aprender por meio do brincar provavelmente incentivará mais o sucesso académico a longo prazo.‍ 

O brincar e os brinquedos das crianças devem ser considerados as suas ações mais sérias. As oportunidades de brincar são essenciais para ajudar as crianças a processar os seus sentimentos e mudanças nas suas vidas, especialmente após um ano de perturbações e trauma. Brincar vai mitigar a ansiedade, promover resiliência e permitir que as crianças construam e reconstruam relacionamentos. Elas precisam disso muito mais do que da pressão académica e telas em tempo excessivo.

No brincar há uma experiência emocional que por si mesma é transformadora, a criança até pode não se lembrar daquilo a que brincou, mas algo acontece nesses momentos que a tornam diferente. Tal como nos sonhos. Como nos diz Ogden (2017), o sonho é importante na medida em que somos transformados por ele. Assim como a leitura de um livro, em que quando uma pessoa termina o romance, sente que algo nela mudou, é um pouco diferente do que era antes. Talvez possamos dar esse mesmo lugar ao brincar e sermos também nós adultos transformados pelo brincar da criança.  

Imagem: Auguste Renoir, “Claude Renoir a brincar” (1905)

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