Trabalho num serviço público de tratamento de adições. Há dias numa reunião clínica discutíamos sobre psicoses tóxicas, a propósito de uma interessante comunicação apresentada no último congresso nacional de psiquiatria pela colega, a psiquiatra Manuela Fraga, intitulada “Normabilidades”. Simplificando, são psicoses ou estados psicóticos, desencadeados por substâncias, tais como as anfetaminas, sendo que nesta matéria se aplica o chavão do” ovo e da galinha”.
Falámos sobre características da substância, vulnerabilidade individual, mas sobretudo da interacção entre ambas.
Tal como foi referido pela psiquiatra Manuela Fraga, a ritalina é considerada uma anfetamina-like e na sua opinião quando existe uma constelação de sintomas que pode levar a um diagnóstico seguro de Perturbação de Hiperatividade e Déficit de Atenção (PHDA), a prescrição desta anfetamina – like pode justificar-se. Acrescenta, no entanto, que quando este diagnóstico não é rigoroso, “se pode instalar uma situação de sobre – medicação com o risco de psicose tóxica, cujas consequências podem ser: grave depressão, sintomas delirantes e alucinatórios sem perturbação da consciência, entre outros”. Sabemos que há equipas especializadas em identificar a PHDA e encontramos na nossa clínica muitas (cada vez mais) crianças e adolescentes medicados com ritalina. Os sintomas desaparecem e aparentemente ficam mais focados na tarefa. Esta resposta standard é de resultado rápido, e dá uma trégua a pais e professores. Não estamos tão certos que assim seja para os nossos pequenos ou jovens pacientes. Ganham ou recuperam, a simpatia e o chamado “reforço positivo” do adulto, eventualmente também a chamada auto-estima, por deixarem de se sentir tão rejeitados . Ganham “normabilidade”. Quem tem a experiência de observação e intervenção em gabinete, sobretudo aquela em que o instrumento é a relação, constata um embotamento do mundo interno. Quem também tem experiência com cocainómanos (aqueles que se “auto- medicam” com cocaína, para erradicação rápida da dor melancólica de crescer neste mundo e não no paraíso) sabe que muitos deles foram crianças hiperativas e alguns medicados com ritalina.
Constatamos ainda na nossa prática clínica, que muito frequentemente a hiperatividade (mesmo a que cumpre os critérios PHDA) tem o valor de um equivalente relacional- depressivo. Pelo agir a criança ou o adolescente diz, de uma dor que não consegue pôr em palavras, em lágrimas ou em birras. Antes conseguissem! Contudo, por alguma razão, que necessita de ser explorada, não o podem fazer. O mesmo é válido, com nuances próprias, para a medicação para dormir e para os neurolépticos, nestas idades.
Existindo a psicoterapia infantil há cerca de cem anos, a psicoterapia juvenil, o tratamento para pais e famílias, porquê silenciar, embotando, a expressão humanamente individual de um sofrimento e, porquê andar a roçar os limites da psicose ? Não seria de integrar a vontade e a motivação de alguns profissionais, promovendo a sua formação nestas áreas?
E viva o tubarão!! É bom quando pode ser simbolizado. Somos um ser do simbólico, da arte, da cultura e da civilização. Haja quem continue a especializar-se no diálogo com ele e na sua integração na parte saudável da personalidade.
Imagem: Manuel, 8 anos
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