A(s) CASA(s)
Fotografia: estudo/maquete#1, Luísa Sol, 2021
I'm looking for a home, where the wheels are turningHome, why I keep returningHome, where my world Is breaking in twoHome, with the neighbors fightingHome, always so excitingHome, were my parents telling the truth?Home, such a body feelingHome, no one ever speakingHome, with our bodies touchingHome, and the cameras watchingHome, will infect whatever you doWhere home, comes to life from out of the blue
Home, David Byrne&Brian Eno, 2008
A arquitectura da casa sempre definiu culturas, sociedades, dinâmicas e relações configurando formas e modos do habitar. O lugar doméstico, conhecido e familiar, de abrigo e pertença é também conotado com a noção de intimidade e surge a partir de um desejo de estabilidade, que desenha rituais. É através de um conjunto de acções realizadas de acordo com uma ordem prescrita ⎯ os rituais ⎯ que se orientam, estabelecem e preservam padrões de comportamento, sendo a arquitectura o dispositivo que delineia, formaliza e materializa esta ordem prescrita que é o habitar.
“If there is a fundamental character of the human being, it is its feeling of not being at home. For this reason, we can argue that the invention of the house as an architectural apparatus is motivated not only by the need for protection from a hostile territory but also by a desire to settle and to give ritual form to life” [in Pier Vitorio Aureli e Maria Sheherazade Giudici, Familiar Horror: Toward a Critique of Domestic Space, (Nova Iorque: Log, 1 (38). Anyone Corporation, 2016), p.105]
Mas a casa constitui também um lugar secreto, desconhecido e obscuro. Estar em casa pode não significar necessariamente estar protegido, estar em casa pode significar, precisamente, estar exposto a uma violência específica e a ameaças provenientes do próprio ambiente doméstico. A palavra “doméstico“ advém do latim domus (casa). A mesma raiz também deu origem a palavras que denotam um controlo potencialmente violento, como dominus, ⎯"o chefe da casa", e as suas várias declinações: dominação, dominío,... [in Pier Vitorio Aureli e Maria Sheherazade Giudici, op.cit, p.113]
Também a palavra arquitectura deriva da palavra arkitekton que combina arkhi (chefe) com tekton (construtor). A arquitectura da casa consistirá na gramática estrutural que organiza o espaço e situa os corpos dentro de si, delineando as relações de hierarquia e poder representadas nas metáforas do espaço construído.
Desde o final do século XIX que o espaço da casa tem sido narrado como um lugar perecível e exposto a inúmeras representações de assombração, duplicação, desmembramento e outros tipos de terror. Porque o “lar” também pode ser assustador; porque acolhe mas também pode encarcerar e porque o “sentir-se em casa” também pode contrastar com diversos vórtices de desamparo(s). E por isto, a arquitectura é intimamente associada à noção de freudiana Uncanny (Unheimliche) “podemos dizer com Freud, o ‘Unheimliche é o que já foi heimliche, caseiro, familiar; o prefixo ‘un’ é o símbolo da repressão”. [in Homi K. Bhabha, “O Mundo e a Casa” in A Casa e o Mundo, ed. SOL, Luísa e ASCENSÃO, Ana Teresa (Lisboa: LATA edições, 2018), p.73]. Esta repressão é a consequência da “inquietante estranheza”, sintomática de uma ameaça latente, de um angustiante não-se-sabe-bem-o-quê, de um desconhecido potencialmente familiar e/ou vice-versa. Pressupõe um nervoso-miudinho associado a uma atmosfera assombrada e a um medo de invasão iminente, ao qual está sempre associado um espaço limítrofe de segurança que distingue o lugar seguro da ameaça. E é na Casa que ambas as situações, sensações e estados de espírito co-habitam.
“The uncanny [is] a peculiar kind of fear, […] for imagining the ‘lost’ birthplace, against the deracinated home […]. The resurgent in the uncanny [is] a metaphor for the fundamentally unlivable modern condition.” [in Anthony Vidler, The Architectural Uncanny: Essays in the Modern Unhomely (Cambridge e Londres: MIT Press, 1999), p. 10]
A Modernidade veio romper uma integridade consensual e estabelecida ⎯ o secularismo e as metanarrativas ⎯ que transformou e estilhaçou, a estrutura do loci provocando a uma sensação de nostalgia latente, de um desejo de pertença a um lugar ⎯ utópico e perfeito ⎯ em que outrora se habitou. Este estado, designado como Transcendental Homelessness por Lukács, consiste nesta condição de inconstância e incerteza no que respeita a um lugar a que se possa chamar casa, porém, sempre volúvel e transitório. Porque todo o indivíduo tem a sensação de que pertenceu ⎯ e pertence ⎯ a algum lugar, sendo o propósito do seu percurso, o regresso, de alguma forma, a esse lugar. Dado que “Totality of being is possible only where everything is already homogeneous before it has been contained by forms” [in Georg Lukács, The Theory of Novel (Londres: Merlin Press, 1971-2006), p.34] e este lugar pressupõe ter uma forma, ou formas, e conter ⎯ é arquitectónico.
A casa é este binómio e esta realidade díptica. Estar-em-Casa é, portanto, habitar esta dialéctica e alojar os cheios, vazios e todas intermitências e entretantos contidos entre o imaterial/construído, dentro/fora, proximidade/distância, familiar/desconhecido, privado/público, construção/ruína, memória/esquecimento, suporte/colapso. E há também, a dimensão mental da casa e sua dimensão construída entre as quais deambulamos: “Freud dizia que no sótão temos a parte consciente ou pensante e na cave está o inconsciente” . [in Vasco Santos, in A Casa e o Mundo, ed. SOL, Luísa e ASCENSÃO, Ana Teresa (Lisboa: LATA edições, 2018), p.58]
Esta itinerância confirma a desarreigação moderna e pós-moderna situadas na noção que Homi K. Bhabha designou de Unhomely ⎯ que não significa ser-se desajolado, mas sim na desoladora constatação de que os limites entre a (s) Casa(s) e o(s) Mundo(s) se diluiram, misturaram e distorceram. “The borders between home and world became confused; and, uncannily, the private and the public become part of each other, forcing upon us a vision that is as divided as it is disorienting.” [in Homi K. Bhabha, The Location of Culture (Londres e Nova Iorque: Routlege, 1994), p.09]
É neste contexto que Paul B. Preciado fala desse lugar – a cruz – como o único lugar que realmente nos situa; porque é o lugar onde coisas se cruzam, e fluem. E é este lugar que permite entender as transições, as trocas, os entres, as diferenças e intersecções que possibilitam que o mapa de uma nova sociedade se comece a desenhar, configurando novas formas de produção e reprodução da vida. [in Paul B. Preciado, Un apartamento em Urano – Crónicas del cruce, (Barcelona: Anagrama, 2019), pp 28, 29]
A casa como o microcosmos pessoal, contentor da psyche e do corpo, fica comprometida pela erosão dos seus limites. Está visto que são muitas camadas sobrepostas de realidade (sempre voláteis e transponíveis) que potenciam não só o ímpeto e a inevitabilidade de ocupar os seus entres ⎯ “ These ‘in between’ spaces provide the terrain for elaborating strategies of selfhood” [in Homi K. Bhabha, 1994, op.cit, p.01] ⎯ mas também e sobretudo de os ultrapassar. E extrapolá-los, extravasá-los, ampliá-los, expandindo as domesticidades e os seus descontentamentos: que se emprestam, imiscuem e superam, movendo-se para além de.
‘To move beyond’ [in Homi K. Bhabha, 1994, op.cit, p.01] — é o impulso e a resignação a uma aflitiva estagnação no entre reconfigurando a permanência a-meio-de-alguma-coisa, onde todos os movimentos são tentativas (ainda que incertas) de transpor a ambígua fronteira do que vem a seguir [in Luísa Sol, in A Casa e o Mundo, ed. SOL, Luísa e ASCENSÃO, Ana Teresa (Lisboa: LATA edições, 2018), p.09]:
“the ‘beyond’ is neither a new horizon, nor leaving behind of the past (…) [is] where space and time cross to produce complex figures of difference and identity, past and present, inside and outside, inclusion and exclusion.” [in Homi K. Bhabha, 1994, op.cit, p.01]
A Casa é, então (e também), o lugar capaz de criar condições de possibilidade para contestar e contrariar rituais, crenças, papéis, padrões de comportamento, hierarquias, relações de poder e “ordens prescritas” antecipando que algo pode sempre renascer dos destroços e estilhaços da(s) casa(s) diluída(s).
E é por todas estas questões que “A Casa nunca está acabada”[in Manuel Aires Mateus, in A Casa e o Mundo, ed. SOL, Luísa e ASCENSÃO, Ana Teresa (Lisboa: LATA edições, 2018), p.13], porque está sempre ⎯ e uncannily ⎯ em (re)construção.
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