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Carlos Farate [ Psicanalista ]

Casa. [ ı ]



Fotografia: Jorge Rolão Aguiar



Casa e coisa

A casa é o lugar de origem do Ser. Mas não preexiste ao Ser, tal como o sujeito não preexiste à linguagem e o mundo, como cosmos, não preexiste ao Homem.  Locus origo do infans na concreção primitiva de sons e imagens que antecede a morfogénese semiótica, a casa mantém um lugar primordial no percurso existencial desde a transformação em infante e adolescente ao advir adulto em sujeito de palavra e de linguagem. Por aí, influencia perenemente o percurso existencial do sujeito psíquico. Alento do imaginário e lugar de sonhar, é paleta figurativa matizada que é pré-forma da simbolização. É fonte de inspiração e de aspiração ao amor sexual, ao amor pelos ideais e é nascente de ideias e de pensamentos que impõem ao sujeito o ofício de pensar. É ainda espaço latente de curiosidade genuína pelo Outro, «santo e senha» da alteridade que substancia o sujeito. Mas tal como o pesadelo é o contraponto do sonho e a pulsão agressiva é o contraponto da pulsão sexual, também a casa pode torna-se no lugar do medo de todos os cambiantes, do ódio representável e irrepresentável, da inveja, do ciúme arreigado, enfim, da exclusividade paranóide que perverte e desumaniza o diferente, o Outro. Um Outro que é alienado como ser e que se torna, desse modo, no exutório preferencial da projecção alienante dos conteúdos violentos e destrutivos rejeitados por si-mesmo. Pulsão destrutiva que pode ser desencadeada por acontecimentos individuais e colectivos mobilizados por macronarrativas dominantes de justificação histórica mais do que duvidosa. Mas que, pelo seu carácter iliterato e maniqueísta, facilmente excitam a perversão esquizoparanóide do Outro, do estrangeiro, do diferente. A casa transfigura-se em coisa — das ding —, em lugar estranho — unheimlich —, que confunde a mente, assombra a realidade e desorganiza os sentidos. A concatenação metonímica de elementos psíquicos e linguísticos que só se referem a um tempo e um domínio substitui-se à metaforização, isto é, à transferência de significado para outro tempo e outro domínio. Self e identidade são negativamente afectados e a relação com o mundo resulta empobrecida. Transfere-se para o domínio do Real lacaniano em que um significante não pode tomar o lugar de outro, ou para a projecção no ecrã beta bioniano em que a operação da barreira de contacto-alfa está inibida. E em que elementos beta, formalmente impensáveis, campeiam um espaço interno que deixou de albergar sonho e pensamento. O lugar de sonhar, a incubadora psíquica dos pensamentos do sonho, está temporariamente inibida e transfigura-se em lugar estranho e assustador, em claustrum, no dizer de Meltzer. Mode d’emploi: comece-se por perscrutar o imaginário; naveguem-se depois sensações e impressões de tempos distantes e tão próximos do viver quotidiano; interroguem-se as coisas guardadas no sótão-álbum da memória autobiográfica; de seguida, utilize-se o álbum como cartografia íntima em visita guiada à memorabília de amores, ódios, tristezas, encantos, surpresas, ilusões e desilusões que permeiam a arquitectura íntima da casa e condensam reminiscências de outros tempos, de outros lugares, iguais e diferentes, próximos e distantes. Finalmente, pergunte-se, são estes objectos reconhecíveis? A interrogação deixa o ser em suspensão. Percebe que sem Outro pensável não há reconhecimento viável de Si. Alenta então o Imaginário que cativa a linguagem e situa a representação da coisa sob a tutela do primado da palavra. Torna-se consciente de que o Outro está sempre na origem da cadeia de significantes que simboliza a experiência do ser, que lhe dá espessura existencial. Reconhece ainda que este espaço semiótico de morfologia complexa condensa aqui e além, passado e presente. Um tempo presente que é futuro em devir. Volta (a) à casa. Uma casa sensível a interrogações e aberta à ressignificação de conteúdos sob a égide dramatúrgica da memória semântica implícita, que, deste modo, substancia a área transicional que conjuga realidade e ficção narrativa em fenómeno mutacional que é trajectória do sonho e sustento de futuro. Um lugar íntimo em que se revisitam cenas infantis de tristeza e de alegria, de medo e de espanto. Em que a alegria do encontro, mais do que do reencontro, é o contraponto do espanto da separação, do medo da rejeição e da tristeza do desamparo. Em que se celebra a vida quando a esperança de luz parecia arredada, escondida numa fenda sombria de vão de escada de um ser-casa apequenado, sem espessura existencial. É que sem Outro pensável a casa perde anima. Só a alteridade que permite pensar o Outro, de dentro e de fora, desvendá-lo na sua ausência, anima a casa. Abre-a ao mundo. E confirma-a como lugar seguro em que a coisa se desassombra e o sonho dita o trajecto futuro do sujeito. Um sujeito de palavra e de linguagem que descobre o sentido da vida a partir do Outro, ao encontro do Outro.




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