Fotografia: Jorge Rolão Aguiar
Walking springs to mind. In human walking, each move
begins with a touch down upon the surface of the earth.
The surface is an accumulation of all the inert bits
huddling down toward the core. On this surface we
stride. We also meander, stumble, hobble. On earth,
floor, path, slope, marsh, negotiating the next move.
Then we claim the step. “I took that step.” Do we forget
the support? Yes, I think so. We take it for granted, unless
we have been out strolling in a major earthquake, or felt
the scree slip beneath our foot on a mountain climb.
Each of us learns to walk by ourselves. We are
encouraged by many, true enough, but what can they do?
The helping hand is useful perhaps, but I think walking
would happen anyway. This is remarkable. Walking then
becomes the foundation for our successive upright
movements. It seems to be the wellspring for much of
dance. (Paxton, 2018, p. 15)
1*
«Manter a peste» com Steve Paxton e prestar-lhe homenagem todos os dias pode ser
falar do movimento que nos constrói enquanto caminhamos. Existimos em
transformação caminhando, o movimento é corpo-pensamento (e vice-versa). Algo
mexe, deslocamo-nos. Durante a escrita de uma tese, caminhar é um modo de
«reactivar os circuitos sensoriais que nos permitiam estar em relação, encontrar as
ligações relevantes para poder partilhar um pensamento “oxigenado” pela
deambulação e reinventar uma linguagem escrita que fizesse sentido para “mais do
que um”» (Antunes e Coelho, 2018).
Steve Paxton morreu este ano [1939–2024]. O coreógrafo estado-unidense foi um
marco importante na vida de muitas pessoas que com ele se cruzaram. De perto ou de
longe, Paxton tocou e fez mover a dança da vida. A proposta de contact improvisation,
que trouxe ao mundo para pensar em conjunto com os seus pares, não morreu
cristalizada nas suas mãos, nem ficou como marca registada nos arquivos. A ideia de
contacto-improvisação expandiu-se sem «controlo parental», envolvendo artes,
comunidades várias, distintas abordagens, partilhas e desafios. É uma parte da sua
enorme investigação que ainda não parou. Transformou as possibilidades de encontro,
e continua viva em diversas cadências de aproximação, dinâmicas, aceleração,
casualidade, envolvência, reflexão…
Improvisar, com ou sem contacto, funciona como uma conversa, é um improviso do
pensamento (e vice-versa). Demanda de retroalimentação.
Uma parte da investigação de Steve Paxton estava relacionada com andar. Por
exemplo, Satisfyin Lover (Paxton, 1967) é uma peça que escolhe dar a ver uma
panóplia de pessoas muito diversas a atravessarem o palco, cada uma com a sua tarefa
relacionada com caminhar e parar, acelerar, olhar e mudar de foco, até sair de cena.
Satisfyin Lover mostra claramente, a quem vê de fora, que a normalidade é uma
projecção, não tem uma forma definitiva. Cada pessoa tem uma singularidade própria
no modo como anda. Caminhar é diferente de desfilar nas passerelles com técnicas e
estilos pré-definidos.
Participei em duas remontagens de Satisfyin Lover, em Lisboa. A primeira proposta
pelo Quatuor Albrecht Knust, em 1997; a outra numa filmagem que ficou exposta
durante a exposição Esboços de Técnicas Interiores (Bigé e Fiadeiro, 2019). Na mesma
altura em que esteve exposto o vídeo baseado em Satisfyin Lover, na exposição, voltou
a fazer-se a remontagem de Satisfyin Lover no palco do grande auditório da Culturgest.
Dessa vez, escolhi ver de fora, da plateia, em lugar de contribuir de corpo inteiro para
activar a peça em cena, para poder finalmente compreender a enorme riqueza de uma
proposta aparentemente tão simples como atravessar o palco caminhando [aqui,
«caminhar» inclui quem se deslocou de cadeira de rodas] (Paxton, 1997 e 2019).
«É possível executar gestos quotidianos em palco sem os alterar?» Esta será uma das
questões que subjaz à proposta de Paxton e que traz atenção à aparente invisibilidade
do movimento pedestre. [ver folha de sala aqui]
Haverá alguma característica que seja comum a todas as pessoas no acto de caminhar?
O bipedismo está inscrito na espécie, mas temos bem presente que nem toda a gente
anda de pé.
Quando de pé, num passo, a inclinação do corpo é sustentada pelo movimento de um
pé que progride, e se destaca à frente do plano frontal da cabeça. O pé também inicia
um movimento helicoidal que se propaga em espirais até aos outros limites do corpo.
Ou, então, é a cabeça que começa. Ou será um braço?
Pequeninas hélices entre ossos do pé, calcâneo, o bordo externo inclina, dobra o pé;
dedilham, de fora para dentro, os dedos do pé até aos dedos maiores, apoiam o peso,
propulsionam o centro de gravidade, ecoam em toda a matéria do corpo. O perónio e
a tíbia quase se rodeiam. Parte interna do joelho. Uma espiral, várias… Todas as
espirais ao mesmo tempo. Não consigo segui-las. Talvez haja uma força de cadência
nas hélices que ligam o pequeno trocânter do fémur direito ao pequeno trocânter do
fémur esquerdo. Um movimento helicoidal entre um trocânter pequeno e o grande
trocânter de cada fémur. Talvez a mesma hélice envolva os ísquios e toda a bacia. Em
contraponto, a cintura escapular. Toda a coluna vertebral bamboleia, os braços
pendulam. Não há linhas rectas no corpo que anda.
Aprendi a andar em dezenas de sessões de fisioterapia. Aprendi a andar dançando.
Aprendi a andar observando pessoas que se deslocam por impulsos, por inclinações,
saltos e espasmos.
Aprendi a caminhar caindo, rastejando, gatinhando…
Aprendi a caminhar imaginando pessoas sem pernas na sua anatomia caminhante.
Aprendi a andar tentando ensinar, transmitindo movimentos.
É uma das habilidades mais complexas, difíceis e fascinantes de observar e de praticar.
Numa sequência de trabalho de estúdio desenhada por Susan Klein, percebemos a
enorme complexidade do acto de caminhar.
A voz de Susan pára a sequência num lugar inesperado. Aí, percebemos que demos por
adquirida uma ligação da sequência. «Ah!», uma microepifania sobre o salto que
íamos dando. Há ali uma ligação energética entre dois pontos nada distantes da
sequência de movimento. Mal se distinguem os ossos da bacia dos fémures. Liga-se
também à aula de embriologia da Sofia Neuparth, onde experimentámos (ou
imaginámos) a dobragem interior e exterior das pernas e dos braços. A distância
aproximada a que ficam do cordão umbilical, do coração. As mãos…
O que é fora e o que é dentro confundem-se. Andar… caminhar pode ser desdobrar
corpo em relação.
«Praça, calçada, boqueirão, regueirão, travessa, terreiro, beco, escadinhas,
rua, calçadão, alameda, avenida. Num espaço marcado pelo urbanismo e
pela arquitectura, pensamos em modos de criar lugares através da
caminhada. Podemos auto-coreografarmo-nos com a cidade? Os
caminhantes percorrem meandros, ruas à deriva, seguindo pulsões e
afinando o seu lugar. A rua é ocupada por mobiliário urbano, corpos
inertes e outros vivos, em movimento, trajectórias que fluem, desvios,
velocidades, circulação. O espaço da cidade não traz livro de instruções. É o
nosso auto-corepoliciamento automatizado e naturalizado que induz, em
cada uma de nós, quais as regras que vamos integrar para podermos
passar despercebidas no quotidiano de uma “certa normalidade”. Essas
regras são de uma enorme subjectividade, variam com culturas de todos os
tipos —culturas familiares, ou individuais, culturas de treino do corpo,
também —, variam com a fisionomia, com a condição física, com a
psicologia, com o estado de atenção de cada uma/um. Uma intenção, um
passo, um desequilíbrio, outro passo, os automatismos permitem-nos
relaxar a vigilância, e regressam quando há uma alteração, como coxear
com muletas, por exemplo. Olhamos para o acto de caminhar como um
gesto de significado aberto. A caminhada enquanto processo de relação
entre o próprio e o mundo é uma sucessão de situações, de experiências
rítmicas moldadas e afinadas com variação de intensidades, cadências e
pausas.» (Antunes e Coelho, 2021)
O passo Madalena
Madalena tem um ano, não gatinha, nem caminha, tem o seu próprio passo
intermédio. Com o joelho direito no chão, impulsionada pelo pé esquerdo e a mão
direita, liberta a mão esquerda para se poder agarrar aos móveis e ficar de pé, além de
estar sempre numa posição com o tronco suficientemente vertical para se sentar em
cima da perna direita dobrada e poder agarrar objectos e atirar. Pelo facto de ter um
joelho no chão, podíamos pensar que coloca a coluna em desequilíbrio para a direita e
se atrasa a balançar, ou que magoa o joelho no chão, mas não. Tira vantagem desse
desequilíbrio para dar mais mobilidade ao pé esquerdo que assim consegue progredir
no espaço, e depois, fazendo do braço direito eixo de apoio, é só atirar o joelho direito
de novo para a frente. Parece estar a imitar um qualquer passo de «Nova Dança» dos
anos 1990. O facto é que ganha mais velocidade do que os bebés que gatinham e está
sempre pronta a sentar-se e ter ambas as mãos disponíveis.
Ponho o caso da Madalena para ilustrar uma das teorias sobre a evolução do
bipedismo, que assenta na necessidade de libertar os membros anteriores para
executar tarefas. Não sei se alguma vez se chegou a uma conclusão sobre qual seria o
factor determinante para a evolução do bipedismo na nossa espécie. Eu tenho uma
predilecção por esta ideia de ser fundamental ter as mãos disponíveis para usar,
transportar, dar, acolher. Quando andamos e as mãos não transportam objectos, elas
podem gingar como pêndulos alternadamente fazendo um movimento helicoidal que
leva a hélice à cintura escapular. Observar crianças em vários estádios de crescimento,
ou experimentarmos nós próprias vários tipos de locomoção, permite-nos intuir
algumas razões da nossa constituição física.
A pélvis de um bípede tem de suportar muito mais peso do que a de um quadrúpede:
consequentemente, tornou-se menos alongada e mais arredondada, e em forma de
bacia, para suportar a coluna vertebral. A própria coluna tornou-se mais robusta,
particularmente na região lombar e sagrada, e tomou a forma de uma curva em duplo
«s» para facilitar a passagem do peso. O crânio também se modificou, o foramen
magnum mudou para uma posição mais na base do crânio. Etc., etc.
Quis actualizar estes dados para partilhar convosco qualquer coisa mais científica e
provada recentemente, mas online só encontrei artigos caros demais. No poço sem
fundo das coisas que navegam na Internet, das várias hipóteses colocadas para
evolução do bipedismo em alguns símios, persistem teorias bastante antigas (por
exemplo, na wikipedia).
A disponibilidade das mãos? Terá sido a bela disponibilidade das mãos que nos
colocou de pé para andar?
Em «Sobre Caminhar em Confinamento» (Antunes e Coelho, 2021), falávamos a partir
dos confinamentos COVID-19, e de outros confinamentos imaginados. Sustentávamos
que «os bailarinos tenderiam a ser especialistas na reinvenção do movimento». E
estariam habilitados, por treino de percepção, a dar atenção ao movimento e ao gesto
em relação, a pressentir os outros e o entorno, e a investirem nos mais diversos
desafios para poderem sair de padrões reconhecíveis de movimento e de percepção.
Portanto, poderiam fazer propostas que não tomassem como dado adquirido todos os
comportamentos já conhecidos (idem). Por exemplo, propostas de reinvenção das
deslocações e do acto de caminhar. No entanto, faltou especificar que nem todos os
treinos, nem todos os bailarinos, nem em todas as situações essa possibilidade é
reconhecível. O treino da sensibilidade não é nada evidente. No que concerne a
proximidade e distância, por exemplo, em 2012, Lisa Nelson ensinou-nos alguns jogos
simples no estúdio de dança do Forum Dança, na altura na LxFactory. Quando um
grupo de pessoas descalças caminha no estúdio, alguma coisa acontece. As relações
alteram-se, o espaço transforma-se na nossa percepção. As pessoas ganham maior
familiaridade e confiança com a persistência e duração da exploração do espaço em
movimento. Quanto mede a distância? Como se mantém a equidistância com várias
pessoas em movimento?
«Se nos mantivermos fiéis a uma só regra — por exemplo, manter dois
metros de distância de uma pessoa que esteja a caminhar no estúdio — e
se formos acrescentando outras — por exemplo, manter dois metros de
distância em relação a duas pessoas que caminham simultaneamente no
estúdio —, em lugar de desencadear evitação podemos fazer evidenciar a
dança da nossa atenção, a dança da nossa escolha. Uma atenção
simultânea a nós e aos outros, em movimento. Uma atenção que cuida do
que está em jogo, pode ser uma “atenção atenciosa”?» (ibidem)
Algumas das aprendizagens feitas no contexto dos estúdios, por exemplo com Lisa
Nelson, Nancy Stark Smith ou Steve Paxton, continuam na escrita. A gravidade da
queda dos corpos prolonga-se na pressão feita nas teclas, no ecrã, nos papéis. O peso
imprime, impressiona, marca, deixa rastos de sentido.
«A água que nos pesa ― somos 70% água (Paxton apud Antunes e Coelho, 2021) ―
orienta o corpo para o chão, de modo sempre experimental. Mesmo que a principal
aprendizagem tenha sido feita na primeira infância, podemos sempre tentar sentir o
peso que nos orienta» (Antunes e Coelho, 2021). O peso da concretude física que
somos e que queremos pôr a andar.
1* Este texto cita um outro, mais longo, «Sobre Caminhar em Confinamento», que eu e Rui F.
Antunes escrevemos no rescaldo dos confinamentos COVID-19, e que poderão consultar aqui:
Sílvia Pinto Coelho investigadora integrada no ICNOVA - Instituto de Comunicação da Nova, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, com financiamento FCT CEECIND/04322/2017/CP1463/CT0009.
Referências:
Antunes, Rui Filipe, e Sílvia Pinto Coelho. 2021. «Sobre Caminhar Em Confinamento».
Revista Lusófona De Estudos Culturais 8(1): 155–73.
Bigé, Romain e Fiadeiro, João. 2019. Exposição Steve Paxton: Esboços de Técnicas
Interiores, ciclo Steve Paxton. Lisboa, Culturgest.
Paxton, Steve. 1997 e 2019 (1967). Peça coreográfica Satisfyin Lover. Lisboa,
Culturgest.
Paxton, Steve. 2018. Gravity. Contredanse Editions.
Paxton, Steve (2019). Conferência na Culturgest 10 de Março 2019. Filmada por BZ 5 Records. Lisboa. Culturgest. (visto a 17/9/2024: https://www.youtube.com/watch?v=jmaD6M08qmY&list=UULFBGhDCBcN1VVR0-cEvTm9LA&index=63)
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