Fotografia: João Santana Lopes
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Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Sorrir pra não chorar
Quero assistir ao sol nascer
Ver as águas dos rios correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer
Quero viver
Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
Se alguém por mim perguntar
Diga que eu só vou voltar
Depois que me encontrar.
Cartola
Pode existir, nos momentos de intensidade (de desespero ou de euforia),
uma tentação para a caminhada.
É preciso sair, é preciso partir, ir e seguir.
Frederic Gros
Cartola, poeta e músico brasileiro, sambista, fundador da Escola Primeira da Mangueira, e Frederic Gros, filósofo francês, parecem caminhar por bandas comunicantes quando reconhecem a íntima ligação entre vida e procura. A revolta da inquietação que impele ao movimento encontra nessa pulsão a vida em potência, que é também a vida em risco e, principalmente, em errância.
Errar, como movimento subversivo que zomba dos caminhos certos e incertos, coloca a meta fora da cena, metaforizando assim os acontecimentos que os afetos sinalizam aos que «andam olhando e olham andando».
Caminhar entre espaços distantes, como um meio de locomoção que nos permite chegar a um destino, transpõe os limites da funcionalidade para possibilidades de relação e de actuação imprevistas, sem caminhos que não derivem do encontro contingencial.
Através do caminho, como um método de pesquisa, perdemos e encontramos. (Des)constituímo-nos o tempo todo. Os desvios impostos ou desejados, sendo uma presença iminente, imprevisível e irremediável, destituem-nos da fixidez num quotidiano sem deriva, tropeços e colisões.
Thomas Ogden (2012) entende a proposta de um processo psicanalítico como um caminho que se guia por entre os múltiplos significados da experiência. Nesse percurso, «tudo o que era o mais óbvio para o paciente deixará de ser
tratado como evidente; em vez disso, o familiar será posto em dúvida, será baralhado e criado um novo no setting analítico».
Como resistência a esse modo de ser e estar em expansão, as estruturas que se compõem mais por limites do que por conteúdos antecipam o ponto de chegada, recusam a vulnerabilidade como potência para o encontro com o que ainda não foi vivido.
Assim, acontece o trânsito pelo «reino da mercadoria» (na senda de Walter Benjamin). Anulando sua significação constituinte — ato ou efeito de caminhar —, «O transeunte atarefado combina o movimento apressado do corpo com um embrutecimento da mente. O seu único objetivo é despachar-se, o intelecto é convocado para calcular os interstícios» (Gros, 2024). Esse cálculo incompatibiliza-se com a potencialidade que o espaço vazio intersticial contém.
Como nos provoca Safatle (2024): «Há quem atravesse a vida confundindo registros, sendo confrontado com placas de “PARE” por todos os lados. Há ainda os que fingem não ver as placas e esquecem de abaixar a cabeça quando os golpes são desferidos, talvez por acreditarem que estão fazendo algo de vital ao não ler placas, mesmo sabendo que terão de aguentar estoicamente o impacto das colisões.»
Enquanto percorro esses pensamentos, meus e de outros, desejo, sem saber como, incluir o que Berenice Bento (2024) nomeia de «palestinização do mundo», referindo-se à «dilacerante experiência de dor» que a mobiliza a transformar o «luto em luta».
Associo, então, que a universalidade da estrangeiridade inerente ao caminhante que se desloca entre lugares nos alerta para a urgência de assumirmos que somos todos estrangeiros, pois a fixidez de um lugar em nós é inviável como possibilidade de vida.
Em dialéctica e sem contradição, é o geno, o sentido de origem-autoctonia que nos materializa para a liberdade da errância. O caminhar criativo de que falam Cartola e Frederic Gros é aquele que subjectiva a experiência, reencontrando o sujeito com a sua história e com o seu lugar.
No entanto, reconhecer o carácter nómada da humanidade, na sua dimensão de linha de contacto, mostra-se insustentável sem uma ampla e profunda transformação da ordem mundial hegemónica que parece assumir o comando do nosso frágil tempo na Terra, a partir da eliminação de partes da nossa comunidade e do estreitamento de potencialidades e possibilidades de caminhos.
Assumindo o salto em desvio, termino:
E se as análises pudessem ser tecidas em caminhadas? Também errantes, sem desistir.
Quantos pacientes, no divã, serão, mesmo que por instantes, errantes?
Referências
Bento, Berenice (2024). Cartas aos que não sepultei. Revista Cult. https://revistacult.uol.com.br/home/carta-nao-sepultei/
Gros, Frédéric (2024). Caminhar: uma filosofia. (1ª ed.) Antígona.
Safatle, Vladimir (2024). Alfabeto das Colisões. (1ª ed.). Ubu.
Ogden, T. (2012). Comments on transference and countertransference in the initial analytic meeting. Em B. Reith, S. Lagerlof, P. Crick, M. Moller & E. Shake (Eds.), Initiating Psychoanalysis: Perspectives (pp.173–188). Routledge.
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