No tempo que faz, vivemos todos penhorados ao caso Bruno de Carvalho.
Qual Quixote, com o seu escudeiro tatuado Mustafá, ilustra, tal como no romance de Cervantes, que a fuga à realidade é uma aspiração do humano.
Em 1981, Desmond Morris, biólogo e zoólogo, publicou A Tribo do Futebol; ele que também é autor do Guia Essencial do Comportamento do Cavalo, onde faz equivaler o futebol a uma actividade tribal. O desafio de futebol é entendido como uma caça ritual. Para Morris, a crise dos factores identitários leva as pessoas a agruparem-se através das suas pertenças, seguindo, em pensamento mágico, o chefe da tribo. Esta neo-religião nunca foi, como hoje, tão avassaladora e totalitária.
De um vértex psicanalítico o caso Bruno de Carvalho/Sporting, como sintoma e narrativa, exemplifica como a futebolização actual serve para enquadrar pulsionalmente as multidões. E serve, de modo latente, para convocar a teorização de Wilfred Bion (1965) sobre o trabalho de grupos.
Seguindo a síntese de Gilles Amado, Bion considera que em qualquer grupo existem dois níveis:
O nível da tarefa, nível consciente, articulado em torno de procedimentos que favorecem a cooperação. Esse nível define uma mentalidade de grupo de trabalho;
O nível da valência, ou protomental, que se refere à esfera emocional e é organizado em torno de três pressupostos básicos:
O pressuposto de dependência significa que os membros do grupo se comportam como se quisessem ser protegidos pelo líder;
O pressuposto luta e fuga, isto é, o grupo reage como se estivesse a ser ameaçado por um perigo exterior e tivesse de se defender dele (cf, processo e-Toupeira);
O pressuposto de acasalamento caracteriza os laços que se formam entre dois participantes no interior do grupo (Bruno e Mustafá, por exemplo), simbolizando a promessa, ou a espera messiânica, de que os problemas actuais do grupo poderão ser resolvidos.
Numa visão política do tema António Guerreiro, um ensaísta que nos espeta uma faca no lombo, sintetiza assim a peste do futebol: “Em vez de peste, o futebol-espectáculo organizado também pode ser um lugar de formações sociopatológicas. E não é preciso ter ocorrido um episódio de violência real para percebermos o que tem sido uma continuada violência simbólica, exercida como uma injunção colectiva através do empreendimento dos media.”
O ano de 1967 produziu dois livros visionários: A Sociedade do Espectáculo de Guy Debord e O Meio é a Mensagem de Marshall McLuhan. Debord definiu o espectáculo como o conjunto de relações sociais mediadas pelas imagens. Mas deixou claro que é impossível a separação entre essas relações sociais e as relações de produção e consumo.
A sociedade do espectáculo corresponde a uma sociedade capitalista, quando há uma interdependência entre o processo de acumulação de capital e o processo de acumulação de imagens, e que atingiu o seu apogeu com o neo-liberalismo triunfante actual.
McLuhan, autor poderoso, que cunhou também o termo aldeia global e que vislumbrou com trinta anos de antecedência a internet e a cibercultura, teoriza que o meio é a mensagem porque também é conteúdo.
A televisão cria o acontecimento. Ela cria todos os dias um Bruno de Carvalho. Ela oculta mostrando. A televisão é uma máquina de guerra ao serviço da violência simbólica, com a cumplicidade tácita de quem a sofre e muitas vezes de quem, inconscientemente, a exerce também.
Falta-nos um Kraus para esta grande época. Diria ele: Nós humanos, somos, afinal, selvagens melhores.
Imagem: Guy Debord, La Société du Spectacle. Simar Films, 1973. Partilhado de ar.pinterest.com
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