Fotografia: João Santana Lopes
Passeando pelas ruelas do maravilhoso Bairro de Gràcia, em Barcelona, em 2020, eis que na Rua da Virtut um grupo de crianças sentadas à soleira de uma porta, o n.º 14, nos dá os bons dias, Hola! Uma inscrição por cima da montra anuncia «Taller de les maquetes, L' hospital de les joguines». Regressada ao tempo do hospital de bonecas da minha infância, ali na Praça da Figueira, espreito para dentro do ateliê. Parece-se com a oficina do Gepetto ou, também podia ser, com a fábrica de brinquedos do Pai Natal: tornos, mesas de trabalho, tintas, pincéis, madeiras, cestos com pedaços de tecido e desperdícios de muitas outras coisas não identificáveis à primeira vista, mas que estão por lá para serem usadas e recicladas. Um universo de cor, numa feliz desarrumação de brincadeiras e trabalhos em curso. Prateleiras com muitas maquetas, bonecos e brinquedos de madeira ali fabricados, manuais de instruções para trabalhos, livros e ilustrações. Bem no centro, estão expostas umas miniaturas, mágicas caixinhas de madeira decoradas no interior, cada uma à sua maneira, pelos artistas. Os artistas são crianças do bairro que ali se juntam para criar, imaginar, fabricar, conviver. Para Brincar. Uma mulher jovem com um riso nos olhos, que se apresenta como a animadora deste espaço, junta-se a nós e aos miúdos, que percebo estarem em pausa-intervalo do seu trabalho lúdico-artístico. Estou encantada.
Ouço a história desta oficina e do museu, um projecto cultural e educativo de pequenas intervenções artísticas nas antigas fachadas do Bairro de Gràcia, que transforma portinhas que caíram em desuso em salas de exposição, com a intenção de levar diariamente a brincadeira e a arte aos mais jovens e criar uma onda de interesse cultural, apresentando o bairro e as suas ruas aos visitantes, às escolas e a grupos de crianças. Entretanto, lá fora, dois dos miúdos, qual guias de um museu a céu aberto, conduzem-nos até uma pequena portinhola de ferro na fachada de um edifício (onde antes se guardavam as chaves das torneiras de água) e abrem-na, dando acesso a uma pequena e surpreendente obra de arte, construída no interior de uma caixinha de madeira. Por cima da portinha, o nome do artista e da obra. Trata-se, explicam os artistas, do «Museu Més Petit del Món» (tradução do catalão: museu mais pequeno do mundo), e podemos visitá-lo a qualquer hora do dia ou da noite, seguindo um mapa-plano do bairro, onde estão assinalados os diferentes pontos (portas) do museu. Trata-se de um circuito pedestre pelo Bairro da Gràcia. Dizem os miúdos que, de quando em quando, possivelmente encantados com a obra, alguns visitantes não resistem em a levar para casa, um furto de amor, mas os pequenos guardiões do museu sorriem compreensivos e aprestam-se a referir que não há problema, porque na manhã seguinte, depois de fazerem a vistoria do circuito a ver se tudo está em ordem, colocarão no lugar vazio uma outra obra de um outro artista.
Estou deslumbrada com as brincadeiras no ateliê, com as maquetas e com os trabalhos que os meus recentes amigos estão aplicadamente a criar: espadas de madeira, construções imaginadas por cada um, pequenas maquetas. Na despedida, prometo levá-los no coração e na memória deste lugar lúdico, único, de encantamento e de criação. Que bonica es la humanitat que té gent així! Pela noite, com o plano do bairro na mão, percorro o circuito pedestre pelas ruas da Gràcia, visitando o Museu Més Petit del Món.
Quando regresso a esta memória, o sentimento que me habita é de encantamento, feitiço que me transporta para uma bolha sem peso, fora do tempo, suspensa num momento de graça, numa admiração pela virtude e pela beleza do mundo. A permanência neste Petit Món, ainda que breve, fonte de felicidade e alegria, conduz-me a alguns outros momentos da minha vida e da minha infância, e, sempre, à mesma palavra: encantamento. Ao lugar do sonho, ao brincar, à ponte entre a realidade e a fantasia de que falou Bruno Bettelheim, a essa «suspensão voluntária da incredulidade», segundo a bela expressão de Samuel Taylor Coleridge. Tempo lúdico, tempo fora do tempo, ilusão protectora, criativa e transformadora.
Donald Winnicott referiu-se à génese deste tempo de criação e de encantamento, situando-o em épocas muito precoces da nossa vida relacional e da construção do psiquismo, no encontro entre um recém-nascido e o seu ambiente materno, quando as respostas sintonizadas do meio permitem ao bebé ter a boa ilusão de que cria o mundo, antes de se iniciar um processo em que o mundo existe como pura exterioridade. Torna-se então possível uma zona intermediária de experiência, recriada nos objectos transicionais, primeira possessão não-eu, em que a criança pode religar os fenómenos que pertencem aos dois níveis de realidade, utilizando e colocando as experiências do mundo real ao serviço da sua realidade interna, do seu espaço íntimo, da sua fantasia, do seu desejo. Mais tarde, no jogo simbólico, ao mesmo tempo que manipula os objectos do mundo que habita, a criança pode dar-lhes as cores da sua fantasia, conferindo-lhes um significado pessoal, e, neste sentido, recria-os em permanência.
Podemos supor como esta experiência é tão fundamental para uma relação saudável, enriquecedora, criativa e prazerosa com o mundo, uma relação virtuosa de encantamento e de graça. Winnicott também acrescentaria que estes fenómenos só podem ser mantidos vivos, ou seja, ter efeito na vida psíquica do recém-nascido, se a resposta do ambiente realmente ocorrer antes de um determinado momento. E que cada bebé tolerará tempos de espera distintos, que aumentarão gradualmente. Observa ainda que se o meio não responder dentro dos limites daquilo que a criança pode suportar, os fenómenos transicionais perdem todo o sentido, o encantamento desfaz-se, a ilusão não é possível, e isso é uma porta de entrada na patologia.
Foi a criança quem criou os fenómenos transicionais ou o ambiente que lhos proporcionou? Nunca o saberemos. Nem é preciso sabê-lo. A revelação quebraria o enigma, o prazer do jogo partilhado, que, para manter a sua vitalidade, é essencial que permaneça no espaço do mistério, do encantamento, do paradoxo, do que sempre escapará à nossa racionalidade.
Também na clínica sabemos como é possível manter o espaço da abertura e do encantamento ou fechá-lo e desfazê-lo. Cada sessão é o investimento comum de um espaço intermediário de jogo partilhado, para o qual flui o conteúdo do que é dito e silenciado, o tom, o ritmo e a gestualidade que os acompanha, o que exige uma sensibilidade viva, atenta, presente, evitando «extrair» significados bizarros e jogar uma versão oficial de verdade, à qual a palavra serviria apenas de pobre ilustração, desvitalizada e sem sentido. Como propôs Winnicott, o terapeuta apresenta ideias ou pensamentos como objectos no espaço potencial da sessão, para serem usados e, se forem úteis ao paciente, conservados como objectos afectivos que vão sofrer uma transformação. A clínica, como espaço humanamente habitado, no qual e a partir do qual ocorrem processos de cuidado e de criação, abraça então a sua origem ― clinamen ―, desvio transformador e criativo. Por isso, «a escuta é a espera vazia aberta ao tempo e à possibilidade de uma palavra livre mais fiel à simplicidade nova de um começo» (Ramos Rosa).
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