Hoje, dia 3 de Dezembro de 2020 é lançada a edição do livro “Bode Inspiratório/Escape Goat”, saído à rua pelas mãos da Relógio d’Água em meados deste ano. Um projecto literário e artístico que juntou 46 escritores e 46 artistas plásticos portugueses, para além de 50 tradutores, durante os primeiros meses desta pandemia.
Entre muitos outros estão Mário de Carvalho, Inês Pedrosa, Afonso Cruz, Afonso Reis Cabral, Gabriela Ruivo Trindade, Rui Zink, José Fanha, Domingos Lobo, Licínia Quitério, Gonçalo M. Tavares, Álvaro Laborinho Lúcio, Rita Ferro, António Olaio, Ana Vidigal, Pedro Cabrita Reis, Manuel João Vieira, Pedro Proença e Teresa Pavão.
O explorar deste território desconhecido, de um mundo que se transformou desde os pequenos detalhes idiossincráticos às grandes linhas de orientação das massas, tornou-se possível através do processo criativo. As bordas costuradas entre a realidade externa e o mundo interno de cada um dos que se aventuraram na escrita conjunta desta história deixaram um testemunho único do percurso da pandemia e do período de isolamento.
Falámos com a escritora Gabriela Ruivo Trindade, uma das participantes e impulsionadoras da divulgação deste projecto, psicóloga de formação, vencedora do prémio LeYa, e pedimos-lhe que nos trouxesse o seu olhar para estes tempos. Seguem as palavras de GRT:
Aos olhos de um vírus
Aos olhos de um vírus – perante o seu discernimento químico – artistas plásticos, escritores, músicos, cantores, operários, cientistas, cineastas, construtores civis, mendigos, taxistas, médicos, engenheiros, primeiros-ministros, varredores de ruas; todos ficamos reduzidos a um amontoado de células disponíveis para o seu alojamento.
A pandemia mais não faz do que nos lembrar aquilo de que somos feitos: células rodeadas de proteínas receptoras de vírus. Estamos à mercê da biologia, acreditemos nela ou não. A reclusão tornou-se virtude do dia para a noite.
Saímos à rua receosos. Olhamos para os dois lados da estrada à cata de carros e de outros veículos de transmissão. Dantes, mudar de passeio era considerado ofensivo, agora é sinal de respeito. Olhamos de lado para quem não se distancia o suficiente e nos deixa à mercê dos seus germes. Como aqueles condutores que fazem manobras perigosas e quase provocam um acidente.
Os cães continuam a vir ter connosco para nos cheirar as canelas, mas nós já não nos baixamos para lhes acariciar a cabeça. Nunca se sabe se os donos estão infectados, e nós também podemos estar sem o sabermos. O medo é uma resposta reflexa do organismo aos sinais de perigo, mas medo de algo invisível torna-se impossível de gerir. Os números gritam mais alto do que o medo, e nós pensamos que talvez devêssemos ser mais cuidadosos. Ou não. É um verbo que ainda não aprendemos a conjugar, este.
Vivemos cada dia a conta gotas; todavia, entrámos em 2020 e já se passaram onze meses sem que tenhamos dado por eles. A sensação de que será isso que ficará depois: o vazio, essa página em branco. Se é que haverá depois. Talvez os meses se tornem anos e séculos; talvez a vida passe a ser medida entre portas e cuidados intensivos, não só os das unidades hospitalares, mas aqueles que teremos de aplicar constantemente, transformados em rotinas. Respeitar distâncias, desinfectar embalagens, usar máscaras, luvas, não tocar, não abraçar, não beijar, não inspirar livremente para se poder continuar a respirar sem problemas.
Os pulmões não reconhecem o vírus, inspiram livremente. A mente, por seu lado, é um horizonte fechado. A pandemia do século XXI é um parente benévolo da peste bubónica ou da pneumónica, graças ao avanço da investigação científica. E, apesar disso, morre-se tanto do vírus como da ignorância, numa encenação grotesca de progresso vilipendiado pelo obscurantismo que julgávamos, senão morto e enterrado, pelo menos atordoado pela idade das luzes.
Morre-se da inacção dos governos, da falta de condições de protecção para o pessoal de saúde, da falta de políticas públicas de saúde, do descaso e do desprezo que o poder político nutre cada vez mais pela ciência. Por outro lado, há territórios onde grassam focos de outras epidemias, a passo com a precaridade de condições de habitação, saneamento e cuidados de saúde básicos: malária, tosse convulsa, varíola, febre amarela, tifo, cólera. Miséria. Fome. Crianças com deformações devido à poliomielite, barrigas inchadas da desnutrição. Chamá-las de doenças erradicadas revela os limites da nossa bolha e daquela mente que queremos aberta e livre. A nossa.
Gabriela Ruivo Trindade
24 de Novembro de 2020
Fotografia de Gabriela Ruivo Trindade
O livro “Bode Inspiratório / Scape Got” – https://relogiodagua.pt/produto/bode-inspiratorio-escape-goat/
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