Toda a razão deve ser animada por uma paixão, a começar pela paixão de conhecer
Edgar Morin
Houve um tempo em que os sábios circulavam na Terra dos homens por entre os diversos campos da ciência, das artes e da cultura e em que nada do que era humano lhes parecia estranho: matemática, física, arquitetura, pintura, escultura, prosa e poesia eram então matéria-prima do pensamento e da ação. Há hoje ainda na Terra dos Homens um filósofo nómada que continua a plantar sementes de que florescem ramos que religam conhecimentos dispersos, a bater-se por um pensamento que fale a língua da complexidade, visão mais ampla do mundo, uma sociedade que escute a terra-pátria e um destino comum, uma via humana que resista a todas as formas de dominação: Edgar Morin.
A vasta obra de Edgar Morin, admirável aventura de Conhecimento e de Liberdade, que percorre os séculos XX e XXI, é inseparável da sua aventura de vida, como nos oferece a ler em “Les souvenirs viennent à ma rencontre” (2021) . Uma preocupação maior anima a sua reflexão desde La Méthode (de 1977 a 2006) até Leçons d’un siècle de Vie (2021), a de um pensamento complexo, que una o que está compartimentado e que resista a todas as formas de ideologia, dogmatismo ou idolatria.
Desde os meus tempos de juventude que o pensamento de Edgar Morin foi participando na construção do meu pensamento e da minha identidade, como um bom acompanhante interno, parental e fraterno. Investigador atento do que nas criptas mais recônditas do humano se presta a aderir à exclusão do Outro, à ilusão e à mentira ou às ideologias totalitárias e servidões voluntárias, militante na resistência, combatente contra o nazismo e, depois, contra o estalinismo, Edgar Morin foi meu companheiro em cada luta pela liberdade, diria que tanto no mundo externo como no mundo interno. Com ele por perto nunca me senti só. Qual tónus revigorante, vai-me mantendo ligada à poesia da vida nos momentos em que a prosa toma inevitavelmente conta dos dias e também me torna mais benevolente para com os necessários questionamentos sobre a condição humana. “Apesar das ruínas e da morte nunca minhas mãos ficam vazias”, escreveu Sophia. Com Edgar Morin encontro-me com “a esperança como expectativa do inesperado” e a ideia de que “há um possível ainda invisível”. Dele aprendo essa diversidade do Ser, que não apenas dupla: como o Homo sapiens (razoável, sábio) é também Homo demens (louco, delirante); o Homo faber (fabricante de ferramentas, técnico, construtor) é também Homo mythologicus (crente, crédulo, religioso, mitológico); o Homo oeconomicus (dedicado ao lucro pessoal) é também insuficiente e deve dar lugar ao Homo ludens (jogador) e ao Homo liber (praticante de atividades gratuitas e criativas).
Pensador de Identidade una e múltipla, assim se define Edgar Morin: “Quem sou eu? Respondo: Sou um ser humano. Esse é o meu substantivo. Mas tenho vários adjectivos, de importância variável, consoante as circunstâncias: sou francês, de origem judia sefardita, parcialmente italiano e espanhol, amplamente mediterrânico, culturalmente europeu, cidadão do mundo, filho da Terra-Pátria. Mas pode-se ser tudo isto ao mesmo tempo? Não, isso depende das circunstâncias e dos momentos em que, ora uma, ora outra destas identidades predomina. Como se pode então ter várias identidades? Resposta: É, na verdade, o caso comum. Cada um tem a identidade da sua família, da sua vila ou da sua cidade, da sua província ou etnia, do seu país, ou, mais vasta, do seu continente, cada um tem uma identidade complexa, quer dizer, ao mesmo tempo una e plural.”
Em tempo de nacionalismos exacerbados e lutas identitárias, que nos desligam e seccionam, que importante esta lembrança de Edgar Morin sobre a complexidade humana, una e plural, esta recusa de uma identidade monolítica, esta consciência tão fundamental para melhorar as relações humanas.
E sobre a barbárie, alerta-nos: “Antes de mais nada, é preciso entender bem que estamos ameaçados, cada vez mais, por duas barbáries. A primeira, conhecemo-la, vem desde os primórdios da história, é a crueldade, a dominação, a subserviência, a tortura, tudo isso. A segunda barbárie, é uma barbárie fria e gelada, a do cálculo económico. Porque quando existe um pensamento fundado exclusivamente em contas, não se vê mais os seres humanos”.
Quem vê Edgar Morin aos 102 anos, nos encontros, conferências e webinars, na rua, não pode deixar de se questionar de onde vem esta força de vida, esta energia, esta juventude de espírito? Qual a fonte de Eros? Ele conta-nos: “Sem o saber, guardei todas as idades da vida. Aos 10 anos, fiquei muito velho com a morte da minha mãe, mas continuei muito infantil, com gosto por trocadilhos, travessuras, piadas. Do meu infortúnio inaudito veio-me uma imensa necessidade de amor e de comunhão, que me proporcionou toda a minha felicidade futura. Isso nunca me abandonou. Também mantive as minhas aspirações juvenis ao mesmo tempo que adquiria um mínimo de experiência. Pude assumir responsabilidades de adulto aos 20 anos, quando fui um militante da Resistência, mas não permaneci adulto por muito tempo. Continuo a interrogar-me sobre tudo, a buscar uma verdade que me escapa, a pensar na espécie humana, da qual faço parte. Finalmente, o amor, a amizade, a curiosidade, fazem-me viver.”
Como talvez aconteça com alguns de vós, quando um autor me é importante, gosto de falar dele, transmitir as suas ideias, fazer circular os seus escritos, para que outros possam ter o mesmo prazer que eu tive com a sua leitura, enriquecer a sua vida, como aconteceu comigo. A obra de Edgar Morin é de tal forma vasta e profunda que transmiti-la em poucas linhas é uma tarefa impossível. Acompanho-me então de algumas das suas palavras, retiradas de Mémentos, capítulo com que encerra o seu livro “Leçons d’un siècle de vie”, em que cada página é uma lição de amor, poesia e sabedoria. Mémentos significa bloco de notas, onde registamos aquilo de que nos queremos lembrar ou onde reagrupamos o essencial das noções sobre um assunto. Em Mémentos deixa-nos escrito Edgar Morin:
Viver é navegar num oceano de incertezas revitalizando-se em ilhas de certezas.
A história humana é relativamente inteligível à-posteriori, mas sempre imprevisível à-priori.
Nenhuma conquista histórica é irreversível.
O humano não é bom nem mau, é complexo e versátil.
Quando o imediato devora, o espírito deriva.
A eliminação total do risco conduz à eliminação total da vida.
O princípio da precaução não tem sentido se não estiver associado a um princípio de risco indispensável à acção e à inovação.
O caminho para o futuro passa pelo regresso às fontes.
A esperança é a expectativa do inesperado.
Os que não têm ódio escapam às demências.
Refuta-se argumentando e não denunciando.
Antes a complexidade que coloca questões a tudo, do que a doutrina que responde a tudo.
Para envelhecer bem é preciso guardar em si as curiosidades da infância, as aspirações da adolescência, as responsabilidades do adulto e, no envelhecimento, procurar extrair a experiência das idades precedentes.
Nunca deixarei de perceber o que há de cruel, implacável e impiedoso na humanidade assim como o que há de terrível na vida e, ao mesmo tempo, o que há de nobre, generoso e bom na humanidade e o que a vida tem de encantador e de maravilhoso.
Devemos frequentemente afrontar esta contradição ética: respeitar toda a pessoa humana e não a ofender no que lhe é sagrado e, ao mesmo tempo, praticar o espírito critico que está animado de não respeitar as crenças impostas como sagradas.
A autocritica é uma higiene psíquica essencial.
Importa não ser realista no sentido trivial (adaptar-se ao imediato), nem irrealista no sentido trivial (esquivar-se aos constrangimentos da realidade). Importa ser realista no sentido complexo: compreender a incerteza do real, saber que há possível ainda invisível.
Critico ideias, não ataco nunca as pessoas. Seria tanto degradar-me quanto degradá-las.
Deveríamos procurar uma vacina contra a raiva especificamente humana, pois vivemos uma verdadeira epidemia.
A realidade esconde-se por detrás das nossas realidades.
O espírito humano está diante da porta fechada do mistério.
(…)
Paris, 9 de Junho de 2023
Entro na livraria Compagnie, Rue des Écoles, com entusiasmo juvenil, para comprar o último livro de Edgar Morin que acaba de ser publicado, nas vésperas do seu aniversário, que celebrará a 8 de Julho: “Encore un moment... textes personnels, politiques, sociologiques, philosophiques et littéraires”.
(…) Et je sais qu’au plus profond de moi-même, et définitivement, je dois non seulement prendre le parti d’Eros sans m’aveugler, tout en sachant que la torche que nous éclaire nous révélera sans faillir l’immensité de l’ombre et de la nuit. Ah! si chacun sentait, savait, que chaque moment de son existence est un moment, certes infinitésimal mais réel au coeur d’une épopée où nous devons nourrir la flamme d’amour qui donne et consume la vie (…)
Encore un moment... OBRIGADA, EDGAR MORIN !
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