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Inês Ataíde Gomes

Adolescer confinado

Isto tudo já acabava!

“Já é difícil ser adolescente, quanto mais agora sem poder fazer nada” – dizia-me uma jovem de 16 anos que poderia chamar-se Aurora.

Dentro das paredes das casas, redutos seguros em tempos estranhos, as famílias tentaram organizar-se o melhor que conseguiram. Cansados da pandemia (todos estamos), suspenderam a respiração, como se mergulhassem em águas profundas e aguardassem o tempo de voltar à superfície. Mas alguns já lutam com a falta de ar. E os adolescentes fervilham em fogo lento.

Numa prisão voluntária para uns, imposta para outros, cujas portas começam a abrir-se devagar, sentem a vida adiada.

“(…) E o vento aquietou-se e nas árvores junto ao palácio nenhuma folha se mexeu. Em torno do palácio começou a crescer uma sebe de espinhos que a cada ano foi ficando mais alta até por fim cercar o palácio e o cobrir por completo. E depois já nem se conseguia ver o palácio, nem sequer a bandeira no telhado. (…)”1

A espera, necessária à maturação, de que tão bem nos fala o conto “A Bela adormecida” vê-se em tempos de confinamento, imposta e prolongada no tempo, às vezes até, desfasada do emergente biológico e social, e ao invés de ser transformadora constituiu-se como elemento regressivo.

A irreverência que levaria à quebra da regra imposta – mais saudável psiquicamente, mas perigosa em termos de saúde pública – deu lugar em muitos casos ao medo e à depressividade.

As saídas à noite há anos esperadas, sonhadas, planeadas, uma ida ao Urban, o passear em Santos, uma volta na Ribeira, foram-lhes vedadas. As expectativas dos namoros pueris, dos passeios pela rua com amigos numa hora mais tardia, ou já mais velhos com o ingresso no secundário, ou na faculdade, e a certeza subjacente de que novos mundo se abririam, foram completamente logradas.

Valeu-lhes vivermos numa era digital.

A integração/pertença ao grupo é garantida através das redes sociais, e das vídeo-chamadas, e a competição tão estruturante nesta idade, por permitir a conquista de um lugar, transferiu-se, principalmente nos rapazes, para os jogos on-line. Mas onde está o corpo?

Preso num ‘tempo quieto’ e muralhado.

É esperado que o corpo/mente adolescente progressivamente deixe de ser o corpo/mente da mãe/casa. Rapazes e raparigas precisam de se afastar do olhar da família para poder testar e experimentar, e fazer um caminho de procura de si mesmos encontrando forma de ir solidificando a sua individuação. As transformações do corpo, que o adolescente precisa descobrir e aceitar, caracterizam este período, assim como o sentir de uma sexualidade emergente. O confronto com o outro que funciona não só como interlocutor mas também como espelho que devolve a sua própria imagem, é fundamental.

Lembramos duas ideias sobejamente conhecidas de Winnicott: a importância do ambiente para o desenvolvimento emocional – que contenha e enquadre as oscilações dependência-independência, a necessidade de ter um lugar, de procurar as próprias soluções; e a construção da capacidade de estar só – como sinal importante do amadurecimento emocional.

Neste ano confinado as tarefas da adolescência depararam-se com uma sebe de espinhos.

No conto fica clara a ideia que chegado o momento certo, após o tempo necessário de sono profundo para gerir as mudanças da adolescência – representadas pelo sangramento do dedo de Aurora picado pelo fuso – que a própria natureza se transformará abrindo um caminho para que o príncipe possa chegar ao castelo, ou seja para que o progredir para a idade adulta possa prosseguir.

Houve um período desarmonioso onde o tempo pareceu parar e em que os adolescentes não entraram no mesmo sono profundo e reparador de Aurora. Mas se há característica que representa a adolescência é a sua plasticidade, curiosidade, impetuosidade. Haja nas famílias essa capacidade adaptativa de, na ausência da magia dos contos de fadas, usarem os seus recursos e os recursos da comunidade, para acertar o passo com o tempo e à medida que for sendo possível, facilitem/promovam/permitam que as tarefas da adolescência se cumpram, e os beijos (simbólicos e não só) aconteçam.

“(…) Inclinou-se e deu-lhe um beijo. Mal os lábios a roçaram, Rosa Espinhosa abriu os olhos, acordou e fitou-o com doçura. Desceram juntos da torre e o rei acordou, e a rainha, e a corte em peso, e todos se fitaram com olhos arregalados. E os cavalos no pátio levantaram-se e sacudiram-se. E os cães de caça saltaram e desataram a abanar a cauda. As pombas no telhado levantaram a cabecinha, olharam em torno e voaram rumo ao prado (…) O assado recomeçou a assar (…) e a criada acabou de depenar a galinha. E o casamento do príncipe e da Rosa Espinhosa foi celebrado com todo o esplendor e eles viveram felizes até ao fim dos seus dias.”1

[1] Estrato do conto “A Rosa Espinhosa” no livro Contos Completos Irmãos Grimm (2013), na tradução de Teresa Aica Bairros. Da coleção Temas e Debates – Circulo de Leitores (pag 263 – 266)

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