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ABC do Amor



Há momentos mágicos, que se escondem nas coisas mais simples, se estivermos disponíveis para nos deixar tocar. Talvez por estarmos necessitados de mensagens de esperança, de precisarmos de acreditar no amor. E de repente, inesperadamente, deixamo-nos envolver na forma verdadeira e sentida com que um grupo de adolescentes, com histórias de vida difíceis e atribuladas, nos vem falar de Amor. Por trás deste projecto esteve o nosso colega Filipe Cardoso Silva, fomos falar com ele.



Inês Ataíde Gomes (I) - No passado dia 8, no teatro Armando Cortez, assistimos ao “ABC do Amor”. Foi um momento comovente, e o que senti como um acto de coragem. Adolescentes e jovens, com experiências de vida tão complexas, a ousarem por semanas mergulhar no que seria para eles o Amor e atreverem-se a sonhar assim - em palco. Conta-nos Filipe, o que é o ExperimentArte? Filipe Cardoso Silva (F) – Inês, o ExperimentArte é um projecto de promoção de Saúde Mental da Unidade de Saúde Wmais (SCML). Procuramos através da criação de um grupo de Teatro terapêutico (renovado a cada encontro) desenvolver competências emocionais de utentes da Unidade W, através de experiências vivenciais de grupo, que são poderosíssimas como sabes, e que por sua vez promovem per si índices progressivos de maturidade emocional em cada elemento participante. Falo em relação aos utentes W, mas também da experiência única para os actores profissionais e colaboradores da Santa Casa da Misericórdia que participam em cada edição. Esta foi a terceira. O mote para cada encontro é sempre o mesmo: “O contacto com o mundo emocional de um sujeito em sofrimento é muitas vezes uma experiência traumática, que dói. No entanto, o contacto pela arte, em que as expressões afectivas mais aterradoras podem aparecer sublimadas, muitas vezes pelo impacto estético que a Criação artística imprime, tornam possível pensar, através da Obra, o real inenarrável.” I - Foi exactamente esse “real inenarrável” que se sentiu presente no intervalo dos fios que teceram esta apresentação. O pôr cá fora, visível, a experiência interna. Para além da função mais social do teatro, do desenvolvimento de competências relacionais e de comunicação, esteve presente o acesso ao estético, ao belo, que imagino estar muito em falta na vida da maioria destes jovens. F - … muito em falta sim. Porém, à semelhança de outros contextos igualmente traumáticos, a capacidade de alguém resistir, de alguém dizer não, como na “Trova do vento que passa”, é formidável. Assistir à transformação de uma miúda com um percurso de vida sinuoso, que torce o nariz aos outros elementos do grupo e que diz “mas é que nem que a vaca tussa me vais ver a pisar um palco” e passa a ser das primeiras a chegar aos ensaios e a primeira a decorar as linhas do seu personagem e a criar conexões com outros elementos, percebemos a avidez de se conectar ligar... Precisava apenas de um pouco de humidade como a Rosa de Jericó (planta do deserto que rola indefinidamente ao sabor do vento e que pode manter as suas sementes protegidas por anos a fio, até “descobrir” humidade que a fixe de novo ao solo). I - Pensava aqui ao ouvir-te o quanto temos todos de “Rosa de Jericó”, e de por isso nos reconhecermos - com os nossos lados mais desamparados e desorganizados - e nos comovemos com a simplicidade com que se fala de amor. Todos temos uma certa fome de amor. Os actores profissionais que abraçaram este projecto ajudaram seguramente a encontrar formas de catalisar estes afectos tão intensos e para muitos assustadores. F - Verdade Inês, todos temos uma certa fome de amor. E enquanto temos ou podemos demonstrar essa fome de amor, amor em que a empatia tem lugar, penso que estamos mais próximos da saúde mental, ou de a podermos reivindicar. Falavas nos actores profissionais. Embora eles não saibam são também escolhidos de forma criteriosa. Há uma espécie de casting-couch, se quiseres, onde numa entrevista apresentamos os propósitos do projecto e ficamos sobretudo a conhecer e perceber melhor quem estamos a convidar e por que valores se regem, no fundo ficamos a saber o que os poderá mover para este desafio que lhes lançamos. Para tentar exemplificar: no segundo ExperimentArte, “O que pode o Humor perante as agruras da vida?” tivemos uma miúda que queria participar mas tinha um pavor enorme de entrar em palco ou sequer de entrar em contacto físico com pares. Acordámos então com ela que seria narradora da peça, em voz off. Teria no fundo que ir gravar em estúdio o seu texto. No dia da gravação titubeou, estava com muitos medos em deixar fluir a voz que, mais tarde, na apresentação da peça iria ecoar num teatro cheio com a presença de 400 pessoas. E ela estaria na plateia…. A ouvir-se. Caso não conseguisse gravar, tínhamos pronta, como sua suplente, ou substituta a Inês Castel-Branco… que faria o trabalho de forma mais competente e profissional. Mas tanto a Inês, como o Afonso Lagarto, a Brienne Keller, a Natália Luíza, a Cláudia Semedo ou qualquer outro actor que participou ou venha a participar neste projecto tem e terá a noção clara que o seu papel será sempre secundário e mais importante que o impacto estético que a obra possa ter no público, conta em primeiro lugar a possibilidade dos nossos miúdos/graúdos ganharem asas, enfrentarem os seus medos e serem protagonistas. Eles, os actores profissionais vão lá estar a suportar, e caso seja necessário não deixarão “cair” de forma nenhuma qualquer miúdo(a) que fique aflito em palco, um pouco ao jeito da cena final do “Little Miss Sunshine”. I - O teatro ao serviço da saúde mental. Muitas vezes perguntam-nos qual a mais valia de ser psicanalista num trabalho institucional, como dinamizador deste projecto o que nos podes dizer sobre isto?


F - A esse propósito lembro-me sempre do Dr. Seabra Diniz, que trabalhou durante largos anos também em contexto institucional e dizia, seja no consultório, seja na instituição, a identidade e compreensão analítica dos fenómenos humanos não se perde de forma alguma, inclusivé no modo como se idealiza cada edição do ExperimentArte. Passa a fazer parte do modo como passamos a entender-nos com um outro. Penso que é um dos propósitos do nosso trabalho, sermos convocados pelos nossos pacientes e aceitar ir com eles a sítios recônditos das suas mentes, onde fica difícil voltar sozinho. Isto para dizer que muitas questões emocionais surgem a partir do envolvimento de cada elemento no grupo no teatro terapêutico, questões essas que serão abordadas por cada um, a seu tempo, nos respectivos processos psicoterapêuticos individuais.



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Fico grata Filipe, mais do que por esta conversa, ou pela experiência de ter assistido à peça, por saber que há sementes de esperança que são lançadas e que dão fruto, que podemos revisitar o lugar da infância, mesmo que momentaneamente, e partir na demanda de um lugar de amor. Como dizia João dos Santos “Qualquer cidade ou outro lugar só serão humanamente habitáveis quando possibilitarem o contacto com a infância – a de cada um em particular e a do mundo, à qual precisamos de estar ligados sob pena de perdermos a seiva que nos alimenta.”1







1 – “João dos Santos – Saúde Mental e Educação” de Maria Eugénia Carvalho e Branco


Fotografia de Filipe Silva

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