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A Peste cai bem

Gostaria antes de mais de dar os parabéns à SPP, e aos colegas particularmente envolvidos nesta iniciativa, pela criação de um blog e fazer votos para que seja tremendamente pestífero. 

A Peste, se me permitem, cai bem, sobretudo por trazer para primeiro plano uma alegada observação de Freud, quando juntamente com Jung e Ferenczi chegam aos Estados Unidos, em 1909, a convite de Granville Stanley Hall, da Clark University (Worcester): “Eles não sabem que nós lhes trazemos a peste”. Mal sabem eles o que os espera, intuiria Freud, ciente da hecatombe que o caldo analítico poderia provocar no seio de uma sociedade erigida sob os auspícios do puritanismo.

Mas é também o título de um grande livro de Albert Camus, de 1947. Aqui a trama passa-se, como convém recordar, numa cidade argelina (Oran) tomada pela peste bubónica, na qual os seus habitantes tinham que conviver de perto com o isolamento, a desconfiança, o medo e a morte que rondava ao virar da esquina. Contudo, é também uma história tocante por retratar a resistência, a solidariedade e a luta em condições bastante adversas em favor da vida desses habitantes.

Neste contexto, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), Instituição com a qual colaboro desde 2005, teve já felizmente momentos críticos de peste descontrolada, em que a influência de uma psicanálise aplicada se fez sentir de forma contundente. Aqui foi essencial o papel do contagiador de serviço João Seabra Diniz e de outros colaboradores não residentes como Maria José Gonçalves ou Maria José Vidigal.

Presentemente, e por ser de uma estirpe de elevado grau de resistência, fiel aos princípios fundadores, com as condições suficientemente favoráveis voltou a ter possibilidade de ser disseminada, nomeadamente no Departamento de Infância, Juventude e Família. A título de exemplo são conceptualizações psicanalíticas aplicadas, aquelas que estão na base do Plano de Capacitação, Autonomização, Reconfiguração e Especialização (CARE) das 21 Casas de Acolhimento de Crianças e Jovens, em situação de grande vulnerabilidade psicossocial.

Estas vão passar a beneficiar de supervisão externa, a fim de, por um lado, evidenciar os aspetos de natureza inconsciente de cada criança/jovem a cargo da SCML, o que nem sempre estava a ser tido em linha de conta, por outro, sublinhar a importância da constituição de equipas de cuidadores consistentes nessas casas. Para isso teve-se em linha de conta os constructos teóricos de Bion e sucedâneos. A colaboração de colegas da SPP foi crucial para a constituição desse grupo de supervisão.

A peste está ainda a entranhar-se na formação permanente da Acção Social onde estão em curso acções como “Por detrás do espelho: atribuindo sentido ao comportamento manifesto” ou “Enquanto houver estrada para andar…”- capacitação para a vida em sociedade dos jovens considerados em “fim de linha”, conjugando autores psicanaliticos, com autores diversos de outras áreas, de Lewis Carrol a Jorge Palma.

Se tudo correr como previsto, poderá ainda ser inculcada num projecto de intervenção precoce com jovens grávidas psicossocialmente vulneráveis (acompanhamento entre o ultimo trimestre de gravidez, até ao segundo ano de vida do bebé) tendo em vista o corte transgeracional do mau trato/negligência, usando conceptualizações de autores contemporâneos psicanalíticos que se dedicam a essas áreas, tais como Peter Fonagy, Mary Target, Massimo Amannitti, entre outros.

Em jeito de conclusão, a peste cai bem e recomenda-se.

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