A Orquestra Geração é um Projeto de Intervenção Social na área da Educação. Fomos falar com a nossa colega Maria Bibas para conhecer melhor esta Orquestra e a forma como a Psicanálise influencia intervenções psicossociais.
T - Olá Maria, podes falar sobre a Orquestra Geração? Quem é, a sua história…
M - A Orquestra Geração é um Projecto de Intervenção Social através da prática orquestral. Inspirado no Programa Venezuelano “El Sistema”, concebido pelo maestro e músico José António Abreu, programa que abrangeu toda a Venezuela e formou músicos internacionalmente reconhecidos.
Em Portugal, teve início em 2007, na cidade da Amadora, a partir da parceria entre a Câmara e o Conservatório Nacional. O então presidente do conselho de gestão do conservatório nacional – o Dr. António Wagner Diniz – foi o grande impulsionador do Programa, que se foi ampliando largamente até os dias de hoje. A coordenação da Orquestra Geração esteve, até ano passado, a cargo de uma equipa coordenada pelo Dr. António Wagner. Atualmente, a Presidente da Associação das Orquestras Sinfónicas Juvenis Sistema Portugal (AOSJSP), é a Dra. Helena Lima. O Projeto está em 17 agrupamentos escolares, na Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, em Jardins de Infância, com a Orquestra dos Afetos, e na região interior do país, com o Projeto Comunidade Geração. Em simultâneo às atividades ligadas ao ensino da música, a O.G. vai tecendo parcerias nacionais e internacionais, incrementando atividades como o Programa Tocar Vidas – bolsas para estudantes do ensino secundário ou superior que contempla relação de “tutoria individual” ao longo do ano letivo.
T - E qual é a tua intervenção com a Orquestra?
M - Eu entrei na O.G. em Janeiro de 2020, pouco antes da convulsão planetária social e sanitária provocada pela Crise Pandémica -COVID19.
Na altura, a direção da OG, em consonância com as necessidades sentidas pela coordenação e equipa de professores/as da escola onde trabalho, perspectivou a integração de uma profissional da psicologia na equipa, assumindo um trabalho direto com os alunos/alunas daquele núcleo específico da OG, em paralelo com possibilidades de articulação e intervenções junto e com a equipa de professores/as. Sendo mais específica, pretendiam um elemento que, levando suas “ferramentas psis”, pudesse potenciar mudanças que se expressassem na rotina das aulas, no sentido do bom funcionamento das mesmas e do progresso das aprendizagens de música em harmonia com o “saber estar” em grupo. Nesse caso, havendo um contexto de grupo bastante próprio que é o “grupo orquestra”. Sinais como dificuldades na interiorização e cumprimento dos horários das aulas, agitação comportamental e comportamentos de insubordinação mais intensos (transgressivos, talvez), assim como dificuldades de aprendizagens mais específicas a nível da atenção/concentração, compreensão dos conteúdos, caracterizam “problemáticas” que são mais enigmáticas, em termos da sua resolução, a partir de uma atuação puramente “estratégico-pedagógica”. Sabemos que isso é assim, pois os sinais/sintomas também revelam e comunicam sofrimentos mais profundos, mas também “reivindicações afetivas”, ou seja, reivindicam relação, mais qualidade relacional!
Desde o início, a proposta foi a da criação de “espaços grupais” com as crianças/pré-adolescentes/adolescentes, para além da possibilidade de intervenções a nível individual.
Como tenho formação em psicodrama psicanalítico, o horizonte da sessão psicodramática esteve sempre como uma imagem/ação possível. Aconteceu que, relativamente às sessões de grupo, não tive como não “conduzir sendo conduzida”. Ir conhecendo o ritmo e as dinâmicas de cada “grupo”(são 7, ao todo) e, em simultâneo, singularizar a relação, reconhecendo as diferenças, subjetividades vivas.
Gerou-se, um espaço-tempo grupal de brincadeiras e, para tal, vamos nos enriquecendo com objetos intermediários – panejamentos, almofadas, jogos, materiais de reciclagem, etc., ou seja, objetos que funcionam como elemento facilitador do contato entre duas ou mais pessoas e que, nesse caso em particular, vão “encarnando” a própria natureza do relação lúdico-afetiva, mas também “pensante”, no sentido do campo de reflexão sobre os acontecimentos, os conflitos, as cenas criadas, as histórias compartilhadas.
Nesse caldo, percebi que a transfiguração da sala é um exercício de liberdade necessário na vivência lúdica daquelas crianças. A brincadeira está tb na sua preparação. Sinto que é uma “liberdade” não muito experimentada nas escolas como um processo pedagógico. Desarrumar é um fenómeno muito inquietante e está sempre sendo evitado, acautelado.
Nós desarrumamos e tornamos a arrumar a sala semanalmente, mas o processo de apropriação e o rearranjo da sala traz sempre algo novo.
Sabemos que a brincadeira não é um “entretenimento”, não é uma atividade “evacuativa” do tipo “a criança precisa gastar energia”, mas um processo mágico de expansão mental e de intimidade relacional. Assim, paralelamente ao trabalho com a equipa de professores, tentando atender o mais possível aos objetivos de trabalho que a OG sustenta para cada ano letivo, proporcionar um setting -espaço-tempo de relação- através do brincar tem sido o meu meio de atuação.
Noutro âmbito, trabalhei no Programa Tocar Vidas, acompanhando jovens durante o ano letivo (aproximadamente), de forma individual, cuja regularidade das sessões era estabelecida caso a caso, assumindo, na sua maioria, um ritmo semanal.
T - E o que tem sido mais rico nessa experiência? Quais as tuas aprendizagens?
É muito fácil identificar em mim o que tem sido mais rico nessa experiência: conhecer aquelas pessoas, digo as crianças e as/os pré e adolescentes, no sentido de travar conhecimento mútuo, de estar engajada, ligada numa relação que se tem construído num espaço-tempo extremamente estruturado – o meio escolar -, mas que é vivida, semanalmente, com um tipo muito especial de espontaneidade.
A potência, a singularidade, a generosidade emocional e o caldeirão de afetos (sempre borbulhando em tensão conflitual) que eu vou reconhecendo naquelas crianças são aprendizagens reais para mim. Aprendizagens que, quero acreditar, impactam a minha vida, em todas as suas esferas, incluindo a clínica, que é habitada com indagações sobre a relação entre o intra e o inter-psíquico, sobre a presença ativa da perspectiva clínica psicanalítica nos espaços coletivos da vida social – escolas, espaço público... o trabalho nos interstícios.
Por outras palavras: ser afetada por elas e sentir que as posso afetar também, corresponde à base do meu trabalho na OG.
Imagem: Maria Bibas
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