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Elias Barreto

A mutilação genital feminina somos nós


Recentemente, ouvi uma jovem de origem africana dizer que quando ouve falar sobre mutilação genital feminina, que é praticada na sua etnia, sente-se envergonhada e atacada, presa num choque de culturas. Se por um lado não pretende reproduzir a tradição com os seus filhos, quando se fala do assunto dá por si a parecer uma acérrima defensora do ritual. É como se procurasse defender aqueles com quem cresceu, que não são pessoas más, mas sim pessoas que acreditam estar a oferecer algo bom, sem a qual uma menina da sua cultura ficará também mutilada, porque ficará a faltar-lhe algo que todas as meninas da sua cultura partilham.


Dei por mim a pensar que talvez ela sinta que as opiniões que ouve sobre este assunto contêm de algo acusatório e sobranceiro, como se insinuassem que atitudes de ataque ao corpo feminino só existem em culturas africanas. Ora, existem na nossa cultura abundantes exemplos de ataque ao corpo e à criatividade femininas, ou se quisermos, de “inveja do útero”.


Vejam-se por exemplo as atitudes em relação à menstruação. As nossas tradições excluem as mulheres menstruadas de lugares valorizados: banidas das adegas porque podem azedar o vinho, fazer apodrecer a carne da salgadeira, atrair azar se vierem a bordo do navio, etc. Todas estas restrições e tabus confirmam a ideia que o sangue menstrual é sujo, perigoso e venenoso, coisa do demo.

As preocupações modernas com os pensos higiénicos, tampões, medicações, bem como a transformação da menstruação em doença, a chamada síndrome de tensão menstrual, que pode até servir de defesa em tribunal, parecem perpetuar estas convicções. Um sinal tangível da fertilidade e do poder reprodutivo feminino é tratado como algo perigoso e repulsivo.


Vejam-se também as atitudes face à gravidez. Está longe de ser um estado que só desperte sentimentos de ternura e protecção. Pode suscitar também movimentos de inveja e ataque, especialmente quando abre uma ferida narcísica em quem não pode ter filhos. Não será por acaso que é frequente os maridos iniciarem "affairs" durante a gravidez das esposas. Ou que um elemento competitivo venha à tona na chamada síndrome de Couvade, em que o homem procura emular as actividades e sintomas físicos da sua mulher grávida. Por exemplo, desenvolvendo um interesse maior pela forma física ou tornando-se obcecado por um animal de estimação, que trata como bebé.

Interrogamo-nos também se por trás daquelas descrições da gravidez como um período horrendo de sofrimento, náuseas e mal-estar, não haverá uma atitude de defesa inconsciente contra o maior medo da grávida: de que o seu interior seja invejado, roubado e destruído. Minimizando o prazer da gravidez, talvez os outros, não só homens, mas também outras mulheres e familiares, sejam menos inclinados a desejar mal ao que tem dentro de si.


O parto é outra arena onde pode vir ao cimo toda a ambivalência em relação ao feminino. Outrora um assunto de mulheres (e parteiras), passou a ser uma condição médica, onde a responsabilidade e o controlo do corpo é retirado às mulheres, passando a estar nas mãos de médicos.

Práticas como o uso de fórceps, cesariana, episiotomia, histerectomia, mastectomia, em que o corpo é retalhado em nome da necessidade médica, corporizam os maiores medos de uma mulher, nomeadamente que o seu corpo seja invadido, roubado e destruído.

Acresce que nos tempos atuais é frequente a remoção do útero e da mama de forma preventiva do cancro. A atitude médica geral parece ser que as mulheres deveriam estar felizes por verem estes seus órgãos removidos.

Mas movimentos como aquele contra a violência obstétrica alertam que muitas destas práticas têm benefícios duvidosos, sendo realizadas sem consideração pelas sequelas emocionais graves que deixam. Além de que são usadas excessiva e defensivamente, não em função das necessidades das mulheres, mas para afastar sentimentos de culpa dos profissionais, na eventualidade de algo correr mal no parto normal, por exemplo. Se assim for, podemos então estar perante práticas estruturadas defensivamente contra a culpa e, quiçá, que institucionalizam a inveja e o sadismo contra o corpo feminino, podendo ser exercidas com um mínimo de responsabilidade pessoal, porque legitimadas pela autoridade médica.

O que dirão futuras gerações de algumas destas práticas? Mantendo-se a tendência cronocêntrica de avaliar outras épocas pela bitola da sua, talvez algo não muito abonatório.


Temos boas razões para considerar que também nós temos as nossas práticas ritualizadas de mutilação do corpo feminino e que necessitamos de continuar a pensar criticamente porque o fazemos. Assim, a mutilação genital feminina não é apenas algo dos “outros”. Tem ressonância com práticas nossas, que manifestam formas subtis de ataque ao feminino.


Já agora, outro tanto se poderia dizer acerca do ataque ao masculino, como atestam os rituais de circuncisão e o envio ancestral de mancebos para a guerra. Mas o texto já vai longo e há que aceitar que nunca se pode dizer tudo.


Imagem: Alexander Grey (Unsplash)


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