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A Máscara




“A epidemia é um fenómeno social tanto quanto médico” Bernard-Henri Levy (2020)

“When reality is surreal, only fiction can make sense of it” Decameron project, New York Times Magazine (2020)


Era uma vez uma máscara cirúrgica que se sentia desvalorizada por estar confinada nas bocas-narizes dos cirurgiões e dentistas: “Como é possível”, pensava, “que neste mundo cada vez mais globalizado, eu esteja restrita aos médicos, e que as pessoas só me olhem quando estão deitadas na marquesa”? Então, interrogou-se sobre quem a poderia ajudar a espalhar-se no mundo, e lembrou-se dos vírus: aqueles seres insignificantes, que nem sequer pertencem ao mundo dos vivos, mas que descobriram uma maneira extraordinária de utilizarem as células vivas para se multiplicarem.


Esboçou um plano. Foi falar com o Covid, que andava a tentar a vida no meio dos mercados de animais chineses, e propôs-lhe um negócio: se ele a ajudasse a tornar-se imprescindível na vida dos humanos, em troca ela ajudá-lo-ia a expandir-se no mundo, contando-lhe os segredos dos homens, que há tantos anos ouvia, por entre a respiração e as palavras dos médicos – as suas doenças, as suas vulnerabilidades, não só físicas, mas também psíquicas e sociais, o medo da morte e a dor da separação, o viver confinado e amontoado em pequenos espaços com poucas condições de higiene, tornando o corpo mais vulnerável.

Revelar-lhe-ia ainda a ganância dos homens e o seu narcisismo, demasiado focados no seu umbigo para se aperceberem do que acontece à volta – o planeta doente, as diferenças sociais e económicas cada vez mais acentuadas, o dinheiro concentrado na mão de poucos, o aproveitamento pela extrema direita e grupos terroristas das crises sociais…

E contar-lhe-ia também sobre a ilusão humana de controlar o mundo à distância de um “clique” digital, quando na realidade ele é dominado pelo poder económico ou por regimes totalitários. E a ilusão de uma ciência omnipotente que tudo explica, que tudo cura.


E assim surgiu a dupla Covid-máscara, que entrou no mundo dos humanos, aproveitando-se das suas vulnerabilidades – da necessidade de proximidade física, do abraço e do beijo para exprimirem emoções e se sentirem menos sós, da pobreza económica onde o tele-trabalho é uma utopia, da necessidade viral de movimento e estimulação externa em viagens constantes, muitas vezes como fuga a depressões latentes. Este novo Covid irrompia em 2019, por entre as brechas da distração das pessoas.


E a dupla vírus-máscara espalhou-se, em alguns no interior das células e na doença, mas na maioria nas máscaras que se tornaram um bem essencial: as pessoas passaram a sair de casa com o kit de primeira necessidade – chaves, dinheiro e máscara -, e ela andava por todo o lado, nas bocas e narizes, ocasionalmente no queixo ou cotovelo, ou pendurada no retrovisor do carro à espera da próxima oportunidade para ouvir os segredos dos homens. E nessas alturas, ela ouvia a respiração ansiosa das pessoas, e a tristeza por já não se poderem abraçar ou dar um forte aperto de mão.

Mas ouvia também o seu medo e como, num mundo cada vez mais complexo, a segurança se tinha tornado mais importante do que a liberdade.


E ouviu os homens a esquecerem-se de tudo o resto: das outras doenças, da fome e miséria no mundo, das guerras e injustiças, da importância das manifestações e concertos de música ao vivo, do toque do corpo do outro, da sua respiração, da sua humanidade. Da liberdade de entrar em qualquer lugar e poder respirar livremente, de ver um espetáculo ao lado de um desconhecido, de olhar na rua os sorrisos dos outros.

E a esquecerem-se das alterações climáticas, das tempestades tropicais nos países antes temperados, dos incêndios frequentes, das cheias e tornados.

Homens-criança aterrorizados que num pensamento mágico apaziguador imaginaram que o vírus, paralisando aviões e carros, vinha com uma missão ambientalista, esquecendo que o vírus não pensa, e que as máscaras não são facilmente recicláveis.


As crianças confinaram-se para não fazerem mal aos avós, e os pais aos seus pais, por vezes confirmando a convicção inconsciente, deixada por antigas zangas e conflitos edipianos, de quererem fazer mal aos progenitores.

As crianças esqueceram-se de como é maravilhoso aprender sobre o mundo sem a separação do ecrã, amparados pelo professor e amigos, tal como anos antes tinham aprendido com as histórias de encantar que os pais contavam antes de dormir.

Os adolescentes sentiram-se perdidos sem o amparo físico do grupo.

Os solitários lamentaram os amores que ficaram por confessar e viver.

Os pacientes em psicoterapia remota tiveram saudades da respiração do terapeuta, ou do seu silêncio-abraço, ou de uma gargalhada ocasional, ou do conforto do divã no consultório, das suas paredes protetoras, ou do quadro pendurado na parede que todas as vezes ouvia os seus desabafos.

O planeta terra deixou de rodar, e passou a cheirar a desinfetante, a ecrã e a medo.

Os médicos e a sua máscara tinham sido coroados e o AC e DC da História tinha-se transformado em Antes-do-Covid e Depois-do-Covid.


Então, um dia, um velhinho confinado em casa cansou-se de ser “idoso”, arrancou a máscara, colocou-a no cesto da reciclagem, passou em casa dos netos, sentou-os nas suas pernas magras e compridas, e explicou-lhes que partia de férias para um outro lugar, onde pudesse reciclar o pensamento. Subiu à montanha mais alta, inspirou intensa e livremente, sentou-se de pernas cruzadas, e sonhou.

Sonhou com a história de todas as pandemias e com um mundo onde não haveria fome, nem necessidade de mercados de animais. Um mundo onde o dinheiro estaria mais bem distribuído, onde as democracias se haviam espalhado de forma viral, onde os homens se sentiam livres e iguais, e por isso aceitavam a diferença de raças, religiões e ideologias. Sonhou com um mundo justo, onde as pessoas se sentiam parte de um todo com o universo, e por isso tinham menos medo de morrer.

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