Desde pequena me recordo do misto de fascínio e medo que a loucura exercia em mim, sentimentos partilhados pelos companheiros de brincadeira, num tempo em que a rua era espaço de liberdade, e se brincava sem supervisão. Apesar da distância de segurança mantida essas figuras nunca passavam despercebidas. A salutar curiosidade infantil prevalecia.
Só mais tarde num treino de adultícia se debateu ardentemente sobre o estreito limiar do que era permitido, do correcto, da moral, do ético, e da loucura.
Mesmo sob a máxima universal que “de médico e de louco todos temos um pouco” vivemos presos numa expectativa comum de que é mais seguro “não inventar” e seguir cânones estipulados, mais ou menos conscientes, sendo leais a heranças transgeracionais que impregnam a nossa conserva cultural.
O pensar do novo, do diferente, são desencorajados até porque “a curiosidade matou o gato”.
Na própria mitologia são vários os exemplos dos que são castigados face à ousadia de fazer diferente, de querer conhecer, ou desobedecer. Basta-nos evocar Prometeu ou Pandora. Ou pensar as ideias de Sto Agostinho, ou os sábios conselhos do velho do Restelo.
Depois existem os fascinantes “loucos”!
A ligação entre arte, genialidade e loucura é intransponível.
Esta ideia, transcultural, baseada na experiência acumulada de gerações, destacou ao longo dos séculos artistas geniais – e loucos. Escritores, pintores, músicos, cientistas, com mentes brilhantes altamente inteligentes e criativos. Vincent Van Gogh, Edvar Munch, Sylvia Plath, Virginia Woolf, Franz Kafka, Friedrich Nietzsche, Robert Schumann, John Nash.
Também a psicanálise teve interesse em entender o processo criativo dos ditos “loucos”.
A procura de entender a criação do “louco” levou Freud a elaborar sobre o compromisso entre o princípio do prazer e o princípio da realidade, a chegar ao conceito de sublimação pensando a criação artística como a satisfação de um impulso, fazendo recurso da fantasia. E sabemos, através das suas cartas e do seu trabalho de 1923, do interesse e fascínio que a figura de Leonardo Davinci nele provocou.
Também Bion nos fala de uma função alfa falha, e no agir psicótico (seja através do discurso ou da produção artística), carregado de elementos beta, como uma porta de acesso directo ao inconsciente em indivíduos incapazes de uma narrativa.
Serão então a curiosidade, o conhecimento e o novo realmente tão terríveis?
Na perspectiva do indivíduo frágil e em sofrimento são potenciais geradores de insegurança e desconforto. Seriam um acto de loucura! Já na perspectiva do analista apresentam-se como essenciais à transformação.
A forma como nos aventuramos a traçar novas rotas, a reinventar olhares, é munindo-nos de conceitos e teorias, como a associação livre de Freud, ou a barreira de contacto de Bion, que servem de suporte nos terrenos ainda desconhecidos para psicanalista e analisando, que juntos, se encontram, numa dança a dois, complexa e profunda, atentos a movimentos transferenciais e contratransferenciais.
Ser contentor das questões do analisando, sem memória e sem desejo, numa mente insaturada, que tolera o não saber e é espaço comum da dupla analítica, é o que permite que surjam novas significações.
Hoje já não olho para os “loucos” da rua nem com medo nem fascínio.
Nem me preocupa tanto estabelecer a linha exacta entre criatividade e loucura.
Mas fascinam-me e comovem-me os actos de disrupção que permitem a criação e transformação analítica.
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