Imersos nesta pandemia cujo “trauma” sanitário estamos certos de que com a ajuda das vacinas vai acabar por passar, mas cujos “traumas” económicos e psíquicos não sabemos que sequelas vão deixar, vale a pena assinalar que no passado dia 27 de Janeiro fez 76 anos da libertação de Auschwitz.
Mas é no consultório que por vezes sou levada a mergulhar no livro “A Bailarina de Auschwitz”, que conta a história (verídica) da destruição e renascimento mental de uma mulher judia (Edith Eger), vítima de Auschwitz, para onde foi levada aos 16 anos, juntamente com os pais e uma irmã.
Despida de roupas, de dignidade e de referências, com fome e frio inimagináveis, e numa angústia permanente sem saber se naquele dia iria para a fila da morte, Edith perde tudo: os pais, que vê serem levados para uma câmara de gás, e os sonhos de infância – ser bailarina, e o amor de adolescência. Mantém-na agarrada à vida (física e mental) a fantasia: o sonho de um futuro em liberdade, depois da guerra, com o seu amor adolescente, e o recriar das referências afetivas da infância, imaginando, enquanto comia as curtas papas de pão e água, o mais delicioso repasto cozinhado pela sua mãe…
O seu corpo é salvo no final da guerra, encontrado no meio de uma pilha de corpos moribundos, mas a sua mente vai manter-se aprisionada durante muitos anos, e percorrer o caminho da ressuscitação emocional. Desligada do desejo de viver – ao descobrir que o seu amor adolescente não tinha sobrevivido -, magra de carnes e de ilusão, aos poucos volta a ganhar a possibilidade de se vincular ao outro e casa-se com um homem também vítima do holocausto, ao lado de quem vai fazer uma verdadeira viagem interior, caminho lento na reconstrução dos destroços emocionais deixados pelo trauma. Nesse caminho torna-se psicóloga, e compreende a necessidade de se confrontar com o seu sofrimento e de “perdoar” o seu agressor (Hitler), assim como de se libertar de uma profunda zanga consigo mesma: quando chegou a Auschwitz um militar perguntou-lhe se a sua (jovem) mãe era sua irmã e Edith, aflita, chamou-a de mãe, razão pela qual esta acabou enviada para a fila da Câmara de Gás…
Alguns pacientes também trazem as marcas dos destroços provocados por um trauma infantil, muitas vezes sem que tenha havido qualquer violência explícita – vítimas de negligência afetiva, por pais muitas vezes depressivos ou mesmo psicóticos, narcísicos, incapazes de atender às necessidades afetivas e relacionais dos filhos. Alguns, tal com Edith no campo de concentração, sobrevivem na prisão da infância agarrados a um sonho de liberdade no futuro, quiçá a um príncipe encantado que irá salvá-los das masmorras do deserto afetivo. Mas é quando esse sonho se torna impossível, quando a liberdade externa põe a descoberto a prisão interna, a repetição do deserto afetivo e os destroços da violência emocional, agora revividos internamente, que o sofrimento mental se torna devastador. Tal como Edith, também eles terão que fazer uma lenta reconstrução emocional e, nesse caminho, “perdoar” aos agressores, que agora vivem no seu interior.
Maria (em tratamento psicanalítico há vários anos) *, filha de uma mãe mentalmente doente e de um pai totalmente centrado em si mesmo, era desde menina obrigada a cuidar (física e psiquicamente) da mãe. Impedida de ser filha e sem um lugar para se aconchegar ou queixar, torna-se vítima de um ódio profundo que, na sua fantasia, imagina capaz de destruir: “Quando me zangava com a minha mãe, não era aceite nem compreendida pelo meu pai, que nunca me protegeu, e sentia um ódio tão grande que imaginava que gostaria que eles morressem. É essa a culpa… que me fez toda a vida sentir má, e que não merecia ser feliz (chora)… Eu libertei-me da tortura de casa, mas ela continua a existir dentro de mim…”
Também Edith, diz a uma paciente, vítima de trauma: “O perdão não significa perdoar o seu agressor pelo que ele lhe fez. Significa perdoar a parte de si mesma que foi vitimizada, e libertar-se da culpa.”.
Um dia também ouvi Maria dizer: “Às vezes durmo com uma fotografia de infância para me lembrar que ainda era criança, e não havia nada que pudesse fazer…”
No final do livro, encontramos uma Edith “ex-vítima”, que nos diz: “a cura não tem a ver com a recuperação; tem a ver com a descoberta: descobrir a esperança no desespero, descobrir uma resposta onde não parece haver nenhuma, descobrir que o que importa não é o que acontece, mas o que fazemos com isso”.
E note-se o título original do livro: “The Choice” – a escolha…
Imagem: Memorial do Holocausto, em Berlim (fotografia da autora)
* Os elementos clínicos de Maria (nome fictício) aqui apresentados foram previamente submetidos à autorização da paciente.
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