Segundo o Psicanalista Contardo Calligaris a patologia, neste começo da pandemia, não está no suposto pânico, mas na negação do que está acontecendo.
Ao ler esta frase recordei-me da talvez mais poderosa imagem do desespero do início do seculo XXI fotografada por Richard Drew.
Olhem para esta foto do dia 11 de setembro de 2001, World Trade Center, 09h 41 ́15 ́ ́. Segundo o teólogo Mark D. Thompson talvez esta seja a mais poderosa imagem do desespero. Ficou conhecida como “The falling man “. Este homem escolheu saltar? Há uma aparente serenidade e uma suspensão no tempo e espaço como se todos nós naquele momento traumático fossemos convidados a observar o nosso corpo em queda para, paradoxalmente, garantirmos a nossa sobrevivência psíquica, como se fossemos meros observadores dum processo em que ficamos dissociados das nossas emoções. Imobilizada num lugar do irrepresentável, esta imagem deixou de ser apresentada durante uma década, pois o horror traumático do mergulho para a morte “escolhido” por outros 200 seres, envolve um pudor pessoal e íntimo, doloroso demais para ser evocado.
Não podemos ver o fogo do qual foge, entendemos sim que ele salta para a morte. Imagino que ele não queria mais do que eu ou vocês saltar para a morte. O seu medo da morte não seria menor que o meu, mas o terror que o esperava, a imolação pelo fogo, escondido da nossa vista, corresponderia a um drama dum momento pessoal. Actualmente, olhamos para as vítimas do Covid no pior momento da nossa pandemia e parece estarmos a esconder as chamas que nos podem imolar e parecemos dissociados, digo, parecemos, pois agora não fomos apanhados sem aviso num acontecimento caótico e imprevisível. Alguns de nós parecem reagir como sapos dentro da panela de água a ferver, adaptados a um calor abrasador que esgotou a sua energia vital e que quando poderiam escapar da morte já não conseguem reagir. No “Falling man” não há a denegação nem a fuga omnipotente. Nos negacionistas do incêndio lento parece existir a lógica do agressor, da não validação do trauma que podem causar, ou do trauma que causam ao imporem a sua ideologia onde a ciência é diabolizada como se fosse um ataque à liberdade individual.
Ferenczi escreve que no prazer da passividade (24/08/1930) quando todas as forças de defesa estão esgotadas (ou também quando o caracter súbito da agressão surpreende os investimentos de defesa) a líbido volta-se contra a própria pessoa com a mesma veemência utilizada, até então, para defender a pessoa. Poderíamos falar formalmente de uma identificação com o adversário mais forte, vitorioso. Segundo Ferenczi o facto é que uma autodestruição desse género pode estar ligada a sentimentos de prazer e que está, incontestavelmente, presente nos casos de submissão masoquista. De onde vem esse prazer? Ferenczi fala-nos de uma nova forma de repouso, uma pulsão de repouso, convertida bruscamente num prazer de auto-sacrifício como, por exemplo, o pássaro fascinado pelo olhar da serpente que, após breve resistência, precipita-se para a sua perda. Quando o mundo em redor não se adapta ao papel de ser devorado entregamo-nos com volúpia ao sacrifício, ou seja, como matéria para outras forças mais poderosas e mais decididas. Deste modo, segundo Ferenczi, estaríamos perante um princípio geral de repouso superior à qual estariam submetidas as pulsões devida e de morte. No início da vida os órgãos e suas funções desenvolvem-se com uma rapidez surpreendente, que só é possível em condições favoráveis de proteção do embrião e da criança. A força vital que resiste às dificuldades da vida não é, portanto, muito forte no nascimento, segundo parece, ela só se reforça após imunização progressiva contra os atentados físicos e psíquicos e por meio de um tratamento e educação conduzida com tato (Ferenczi, 1929). Ferenczi distancia-se, pois, de uma hipótese constitucional para valorizar o tato do meio ambiente. O tato, faculdade de sentir com, equivale a introduzir impulsos positivos de vida e razões para continuar a existir. Daí, tira-se uma primeira conclusão: as pulsões de vida enquanto tendência erótica e força vital, embora parte integrante do ser humano, só cumprem a sua função caso o ambiente favoreça a sua dinamização. Pode pensar-se que o mesmo se aplica à pulsão de morte, a falha da imunização poderia corresponder a um recrudescimento da tendência ao inorgânico. Ambas as tendências dependeriam das primeiras relações do indivíduo com o meio circundante e não estariam ligadas à sua constituição. As suas palavras são eloquentes: A criança recém-nascida utiliza toda a sua libido para o seu próprio crescimento e para crescer normalmente precisa que lhe forneçam líbido adicional. Para Ferenczi os bebés não amam, é preciso que sejam amados (Ferenczi, 1932).
Sem os anticorpos maternos dos primeiros meses um recém-nascido sucumbiria. Do mesmo modo sem o tato do meio ambiente, sem esse ato de amor que é o esforço coletivo de encontrarmos uma imunização que nos proteja, iremos sucumbir. Para Ferenczi, a faculdade de adaptação à realidade, espécie de reconhecimento orgânico do mundo exterior que é manifesto no modo de vida dos seres que vivem em simbiose e cooperação, é fundamental para a nossa sobrevivência. Como nos diz Manuel de Freitas no seu poema “Agonistes of the eternal wait” (1990)
Não é fácil falar Das coisas que nos matam. Uma espécie de símio Subia a escada de Jacob, Reiterando aquém Ou além da morte A precária escuridão das estrelas.
Imagem: “The Falling man”, Richard Drew, 11/09/2001 WTC
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