“São a fome e o amor que movem o mundo”, palavras do poeta-filósofo Schiller.
Freud publica em 1930 ‘Mal-estar na civilização’, evidenciando este antagonismo entre os instintos e a civilização, numa espécie de relação inversa entre a civilização e o livre desenvolvimento dos impulsos.
Os últimos trabalhos de Freud deixam transparecer uma concepção mais “pessimista”, na medida em que teríamos de assumir uma natureza humana contendo uma componente de crueldade iminente e não dependente de outras vicissitudes.
A fórmula “ama o teu próximo como a ti mesmo”, revela-se em Freud como uma estratégia refinada de inibição da finalidade instintiva, pois nada é tão contrário à nossa natureza, tendo em conta o desprezo pela dependência e a humilhação da incompletude.
Para Freud, a inclinação para a agressão constitui o maior impedimento à civilização. Ela proviria do tal remanescente instintivo impedido de realizar as suas potencialidades. Paradoxalmente, ela constituirá, de um modo transformado, o potencial para a própria formação da civilização. Encontramos também em Nietzsche os primórdios da concepção de uma instância como o Super-ego, fundadora da civilização. Toda a agressividade que se gostaria de exercer para fora é voltada para dentro e isso possibilita a convivência entre o individual e o cultural.
Através do sentido do trágico, entendemos que arriscar a viver é entender o recalcado, é fortalecer-se pelas feridas, já não em precipitação sobre o objecto de desejo, já não o martelo destruidor e sim o martelo apreciador. A morte de Deus significa a morte do Eu e, assim, a afirmação daquilo que é, e que não cessa de ser, porque em última instância não é, “torna-se”. Esta possibilidade supera a necessidade humana de identidade e afirma o desejo de ser tudo para poder não ser nada, o prazer do aniquilamento, para reflectir enfim o olhar comovido da beleza total, aquela que compreende a totalidade das coisas.
1. Esta espécie de formação reactiva aparece referida em Nietzsche, por exemplo, em Para além de bem e de mal: “poder-se-ia avaliar o grau de ódio que lhes inspira a vida pela medida em que eles [os artistas] querem ver a sua imagem falseada, esfumada, sublimada, divinizada” (Nietzsche, 1886, Capítulo Terceiro – A essência do religioso, § 59, p. 72);
A ilusão dada pelo Eu: “O que esperamos quando vemos beleza? Ser belos. Consideramos que a felicidade deve estar ligada à beleza. Mas isso é um erro.” (Nietzsche, 1878, Secção Quatro: Da alma dos artistas e dos escritores, § 149, p. 99)
2. “Infelizes! Viam-se reduzidos à sua ‘consciência’, ao seu órgão mais fraco e mais coxo! Creio que nunca houve na terra desgraça tão grande, mal-estar tão horrível! Acrescente-se a isto que os antigos instintos não haviam renunciado de vez às suas exigências. Mas era difícil e amiúde impossível satisfazê-las; era preciso procurar satisfações novas e subterrâneas. Os instintos sob a enorme força repressiva, volvem para dentro, a isto se chama interiorização do homem; assim se desenvolve o que mais tarde se há-de chamar ‘alma’” (Nietzsche, 1887, 2º Ensaio, § XVI, p. 76).
Imagem: Catarina Veiga Fernandes
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