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A arte faz-nos tão bem!

Au milieu de l’hiver, j’apprenais enfin qu’il y avait en moi un été invincible

Albert Camus

Arte a fim de não morrer de verdade, escreveu Nietzsche em Fragmentos póstumos.A arte rompe com a representação comum e utilitarista do mundo, dá-lhe e dá-nos descanso, autoriza a renúncia do provar, de tornar o mundo inteligível, previsível e útil. Podemos descansar do mundo e o mundo pode descansar de nós. Voltaremos a encontrar-nos em breve, nada mais certo, mas por agora repousamos da fadiga dessa negociação diária. O que seria a vida se não tivéssemos a coragem de tentar alguma coisa (Van Gogh)?

A Psicanálise sempre se debruçou sobre os enigmas da criação artística, essa zona aliada de Eros no trabalho de civilização. A paixão pelo imaginário é partilhada por artistas e psicanalistas. Tal como a arte, a psicanálise está permeada pela subjetividade, pelo inconsciente dinâmico, pelo sonho e pela procura de uma verdade que nos transcende e de que nos perdemos. Tal como a obra de arte, a cura analítica gera novos significados no psiquismo. E tal como na experiência de contemplação de uma obra de arte, também é aqui necessária a disposição para o assombro de que nos fala Leopold Nosek, para que o pensamento aceite permanecer no trajecto de vôo.

Na bela formulação de Winnicott são os símbolos que religam o mundo exterior e interior e que vivificam o nosso estar no mundo.Toda a criação artística envolve a descoberta de um objecto simbolicamente significativo que preenche necessidades emocionais inconscientes e é possivelmente também esta a fonte da emoção-experiência estética no leitor da obra. Maravilhamo-nos, somos impressionados, tocados. Despertaremos transformados.

A capacidade de deslumbramento é pulsão de vida, a sua perda é a morte psíquica, queda no desencantamento. Uma necessidade vital estará na origem da criação artística para vivermos duas vezes(Camus). O nosso bem-estar no mundo depende da possibilidade de acedermos a uma qualquer emoção estética, num qualquer lugar, quando uma fronteira dentro/fora é provisoriamente abolida. A música sou eu e eu sou a música, a paisagem está em mim e eu sou a paisagem, estou só e estou no íntimo do mundo(Ramos Rosa). A contemplação estética é um sonho provocado, dizia Sartre.Fascínio de deslizamento para o irreal, inquietante estranheza e estranha familiaridade, a experiência estética é essencial à vida e à humanização. Sem ela o mundo torna-se técnico, humanamente inabitável. Morreríamos em vida. Como escreveu Pontalis, a propósito da ideia de criatividade em Winnicott “o mundo das nossas percepções é letra morta enquanto não for animado por um olhar”. É este olhar que a arte nos oferece em comunhão, generosamente. O artista é alguém especialmente dotado para esta dádiva,transportando-nos para a existência de uma outra realidade que, nas suas criações, põe em movimento.

Diz Arnold Hauser que se há uma explicação psicológica universalmente válida para o impulso criador, não poderá começar senão a partir de uma tentativa de recuperar zonas perdidas ou esquecidas da vida consciente. A arte liga-nos a nós mesmos. Quando o imprevisto inunda o previsto e o sonho entra pela realidade, eis o momento do deslizamento, do encantamento e de uma absoluta atenção que nada poderá perturbar.

Escreve Ana Hatherly que “o artista, o poeta, o escritor, os que perguntam, todos são caçadores de simulacros, incansáveis calculadores de improbabilidades. Pombas ou abutres, frágeis canários ou escondidos melros, raspam, rasgam, rompem, sempre roendo as suas próprias garras. O invisível que há neles então emerge”.Encontro entre a sensibilidade do artista e a de todos os homens, a arte é um sonho de humanidade.

Libertação do ser, nem deus nem mestre,janela que se abre sem pedir licença. O que será que será que dá dentro da gente que não devia, que desacata a gente, que é rebelia?

Escreveu Freud numa carta a Pfister “É preciso ser sem escrúpulos, trair-se, expor-se, comportar-se como o artista que compra tintas com o dinheiro da casa e queima os móveis para que o modelo não sinta frio. Sem algumas destas ações criminosas, não se pode fazer nada direito”.

A arte faz-nos tão bem!

Imagem: Aguarela Maria Teresa Sá

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