Recentemente, numa visita ao dentista, verifiquei que tinham desaparecido os botões junto aos elevadores que necessitava para chegar ao 13º andar. No lugar deles surgia um teclado discreto e minimalista, ao jeito da arquitetura moderna, à espera de que os meus dedos digitalizassem o andar para onde desejava ir. Após um momento de hesitação, regado de sentimentos de estranheza, lá digitalizei o andar, ao que o dito me respondeu com uma letra a indicar o elevador para onde me deveria dirigir. Abriram-se então as portas de um “paralelepípedo” gigante, liso e imaculado onde, no lugar de uma parede interrompida por botões, existia um ecrã pequeno e discreto a indicar o andar para onde se/me dirigia.
Uma vez lá dentro, perante a minha cara perplexa, uma rapariga explicou-me que se tratava de “elevadores inteligentes”, enquanto eu pensava, em elevadores “autoritários” que não nos permitiam alterar um possível engano, ou mudar de ideias e resolver ficar no andar abaixo para exercitar as pernas num lanço de escadas a pé. Aquele elevador não admitia hesitações, alterações de rota, ambivalências, enfim, humanidades...
Há uns tempos, num Podcast, uma artista, mulher homossexual, acusada de ser transfóbica por não sentir desejo sexual por pessoas de “género feminino” com corpo masculino, queixava-se da “ditadura do transexual”, por “obrigar o resto do mundo” a olhar para ele/a de acordo como ele/a se vê a si mesmo... Ou seja, não se tratava de respeitar a sua subjetividade, mas de a transformar numa realidade imposta ao olhar do outro.
Um amigo meu levou os filhos a verem um musical na Broadway – a lindíssima história Shakespeariana de amor, paixão, morte, rivalidade “Romeu e Julieta” – agora (trans)mutada numa história “moderna”, pseudodemocrática e politicamente correta, de uma Julieta que, no lugar do Amor, procurava a sua identidade, e em vez de tomar veneno, ia passear para Paris. É ali que encontra Romeu e enfrenta a rivalidade do/da amigo/a Transsexual (M-F), que tinha ciúmes de ambos...
Aquilo que mais espantou o meu amigo foi a reação indiferente do filho, reveladora deste “Novo Normal” em que se confunde “tolerância” com “tudo aceitar sem nada questionar”.
Também a história do “Atirei o pau ao Gato”, que tantos de nós cantámos em crianças sem nunca prestar atenção ao significado das palavras (porque na infância a música/afeto é mais importante do que as palavras), foi “transmutada” para “Atirei o pão ao gato”, e o “ele morreu” para “ele comeu”. E até o “Lobo Mau” deixou de comer a avozinha (e o Capuchinho), apesar de na história original ambos serem salvos pelo caçador, que abre a barriga do lobo onde coloca pedras no seu lugar.
Não vão as crianças ficar traumatizadas com tanto mal...
Mal? Bem? Que moral emerge nestes “Tempos Modernos”? O mal da “travessura” do menino que atira um pau a um gato, ou do lobo/perigo, a todo o custo negados? As histórias infantis clássicas, cheias de bruxas, madrastas, lobos, papões e afins, existem para que a criança seja capaz de reconhecer os seus medos, os seus “monstros internos”, a sua própria agressividade, e compreenda/aceite que tudo isso existe, dentro e fora, mas que pode ser transformado por “fadas” e “caçadores”, e que tudo acaba bem porque Eros vence Thanatos.
O mal da nossa sociedade atual é a mentira, o politicamente correto e a ditadura do “aceita sem questionar”.
É a manipulação da informação através da Internet, a criação de Avatars perfeitos por adolescentes em crise (que faz os restantes adolescentes espetadores sentirem-se ainda mais horríveis e solitários) e, sobretudo, a manipulação das Rede Sociais (como o TikTok) para alguns ganharem muito dinheiro com a proliferação desmedida de conteúdos crus, de ordem sexual (pornografia) ou agressiva (incitação à violência sexual), à custa de adolescentes desesperados por sorverem um sentido e uma identidade.
O mal atual é a autoridade e controlo social disfarçados de respeito pela diversidade. É o adolescente do Sec. XXI que, perante a hesitação e dúvida naturais nesta fase da vida, é obrigado a entrar num “elevador inteligente” que o obriga a digitalizar a sua identidade de género e de escolha sexual (duas coisas tão diferentes colocadas no mesmo saco). Não há liberdade para hesitar ou voltar atrás, ou até fazer um lanço de escadas enquanto reflete no assunto, logo encaminhado para uma etiqueta, ou mesmo para uma cama cirúrgica.
Alertam-se os jovens para grandes problemas atuais, como as alterações climáticas, mas ensina-se pouco a diferenciar o Bem e o Mal, a verdade da mentira...
Já dizia Bion que o sofrimento mental e a patologia não são mais do que mentiras (não conscientes) ditas a si mesmo. O depressivo no autoengano de que teve uma infância encantada, o obsessivo no convencimento de que a “porcaria” e a desordem estão no mundo externo que é necessário controlar a todo o custo, o psicótico na “decisão” de viver sob a égide do desmentido da realidade.
Então, subitamente, vindo do nada, sou surpreendida por encontros que me fazem acreditar que a Magia ainda anda por aí, como no Musical infantil “O Feiticeiro de Oz” (Teatro Armando Cortez). Com uma estética mágica de cores, cenários, poesia, música e dança, é talvez o melhor espetáculo infantil que já vi. Sem ser infantilizante ou disparatado, com uma enorme inteligência e arte (e chamando também a criança no interior do adulto), consegue mostrar que a Magia está dentro de nós, mas que é preciso fazer um caminho interno para a descobrir.
O “inteligente” Espantalho desmascara um Feiticeiro de Oz grandioso e omnipotente que, reconhecendo a sua fragilidade, impotência e humanidade, ajuda cada um dos personagens a perceber que aquilo que tanto queriam tinha sido conquistado por eles próprios ao longo da aventura no caminho das pedras amarelas: o Homem da Lata “encontrou” o coração que procurava porque em todos os obstáculos mostrou uma enorme bondade, empatia e tolerância pelos amigos (e inimigos); o espantalho à procura de um cérebro porque foi sempre encontrando soluções inteligentes e criativas para os problemas que surgiam no caminho; o leão cobarde porque descobriu uma enorme coragem quando percebeu que corria o risco de perder aqueles de que mais gostava.
Este musical infantil, ao contrário do Romeu e Julieta da Broadway, não tinha sido “Transmutado” (do latim “mudar de lugar”) para a todos agradar, numa submissão ao “politicamente correto”, mas “transformado” (do latim “mudar de forma”) a bem da verdade.
Se a reta é o caminho mais curto entre dois pontos no espaço, assim não é para a Sabedoria humana, longe disso, é necessário dar voltas e arabescos, numa marcha des-ritmada, com paragens e marchas atrás ocasionais – é esse o caminho da Psicanálise, e uma das formas de, na relação com Outro, encontrar Magia em si próprio. Mesmo a pequena Dorothy, que utilizou os sapatos mágicos para regressar a casa, precisou que alguém lhe lembrasse que os tinha nos pés.
A minha filha de cinco anos, de volta a casa, foi buscar a sua velha história do Feiticeiro de Oz (na qual todos os desejos são concedidos e não descobertos) e passou dias seguidos a pedir-me que a lesse antes de ir para a cama, mas que alterasse alguns detalhes de acordo com a peça de teatro que agora trazia nos pés.
Um Ano Novo cheio de Magia...
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